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Escritora usa a literatura fantástica para falar da realidade

Carmen Maria Machado, em seu elogiado livro de estreia, 'O Corpo Dela e Outras Farras', trata da nova sexualidade recorrendo ao sobrenatural

Por André Cáceres
Atualização:

“Se estiver lendo esta história em voz alta, entregue uma faca pequena para os ouvintes e peça que cortem o pedaço tenro de pele entre o seu indicador e o polegar. Depois agradeça a eles.” É assim que a escritora americana de ascendência cubana Carmen Maria Machado instrui o leitor após a protagonista enfrentar um parto no conto O Ponto do Marido, que abre seu livro de estreia, O Corpo Dela e Outras Farras. Essa narrativa curta é uma releitura de uma história clássica de terror de Alvin Schwartz, e o trecho ilustra como o desconforto, o absurdo e o estranho são as companhias constantes na literatura dela. 

Carmen Maria Machado, autora de origemcubana: corpo fragmentado Foto: Editora Planeta

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Seus contos usam elementos fantásticos ou não realistas permeados por uma atmosfera de terror para tratar da violência contra o corpo feminino infligida pela sociedade. É o que ocorre em Oito Bocados, em que a protagonista se submete a uma cirurgia bariátrica e a gordura indesejável que ela retirou passa a assombrá-la pela casa, forçando-a a arremessar aquela massa com virulência para o porão. “Uma nova mulher não apenas deixa para trás o seu antigo eu; ela o joga fora com força.” O que ela não consegue encarar é a dúvida de sua filha: “Você odeia o meu corpo, mãe? (...) Você odiava o seu, óbvio, mas o meu se parece com o que o seu costumava ser.”

Carmen sempre começa seus contos com um cenário realista, mas o estranhamento surge pelas frestas de sua prosa. A princípio, nada parece fora de lugar até que o sobrenatural se torna impossível de ignorar. Um bom exemplo é o conto Inventário, em que a protagonista vai listando todas as pessoas com quem fez sexo na vida. No entanto, sem que esse registro seja interrompido, percebe-se que a verdadeira trama é sobre uma catástrofe provocada por uma doença. Sobre sua obra, a autora respondeu ao Aliás:

Por que usar essas elipses fantásticas para se referir a problemas reais? Acredito que existam muitas maneiras de se contar histórias. Eu estou particularmente interessada em usar uma espécie de elemento fantasioso ou não realista para alcançar certas questões ocultas ou centrais sobre gênero e sexualidade. E eu acho que usar esse estilo é uma maneira de fazer isso. Quando escrevi o último conto do livro, Difícil em Festas, lembro que estava interessada em escrever sobre violência sexual, mas preocupada que pensariam ‘Lá vem outra feminista falando disso’. Então decidi ponderar sobre essa questão da interioridade, sobre o que acontece após a violência e como você não consegue se colocar nesse terreno de novo. Fiz isso por meio do elemento fantástico. 

Como você percebe o sobrenatural na literatura? Na vida real, eu não acredito no sobrenatural. Sou muito pragmática nesse sentido. Mas eu me interesso por essa temática e estou sempre lendo e pensando sobre o sobrenatural. Meus filmes favoritos são de horror.

Seus personagens masculinos nunca são retratados como violentos, mas há sempre uma violência psicológica sutil.  Receio que quando as pessoas pensam sobre violência sexual e doméstica, elas pensam sobre algum clichê como um marido batendo na mulher. E não é como se isso não ocorresse, é claro que acontece. Mas as maneiras pelas quais homens perpetram violência contra mulheres são muito mais complexas do que apenas batendo nelas. Eu estou mais interessada nos traumas psicológicos sutis que as mulheres enfrentam.

Parece que os homens nas suas histórias nem se dão conta do prejuízo que causam. Exatamente. Atualmente testemunhamos um grande debate sobre o que os homens podem fazer e muitos deles estão percebendo como infligem violência sem intenção. Muitos homens falam: ‘Eu não bato na minha mulher’. Mas o dano psicológico pode ser tremendo. E uma das temáticas que eu trabalho é sobre as diferentes maneiras que as pessoas podem causar violência contra as outras. E não somente sobre gênero.

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Vendo nosso cenário político contemporâneo, podemos dizer que a vida real tem tons mais irrealistas do que a ficção, em certa medida? Eu sinto que atualmente, com Trump na presidência, estamos vivendo uma espécie de sátira de horror. Tudo está tão disfuncional e terrível que realmente parece algo irreal ou surreal. Nós, artistas e escritores, temos que honrar esses sentimentos. A vida real pode ser realmente muito esquisita.

Usar a ficção para normalizar relações lésbicas em suas história pode ajudar o público a aceitar melhor esses personagens homossexuais? Absolutamente. Isso é o lado trágico de quando as pessoas não conseguem ser publicadas por ser mulher, gay, não brancas ou ficam presas a uma categoria. Mas a literatura delas não necessariamente tem um fundo moral. Se você sempre lê a mesma história sobre um tipo de personagem, acaba acreditando que a vida dessas pessoas só é daquele jeito, quando na verdade suas vidas são tão diversas quanto possível.Para mim, é importante lésbicas e experiências femininas.

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