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Está difícil para John McCain

Só masoquismo faria os americanos elegerem um republicano após o governo de George W. Bush

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Há quem diga que Deus protege os bêbados, as crianças e os Estados Unidos. Tenho minhas dúvidas quanto aos dois primeiros, mas se Deus realmente existe, os Estados Unidos não têm o que temer. Se oito anos de governo Bush não conseguiram acabar com o país, o que mais pode causar sua ruína? Deus gosta tanto da América (e a afeição é recíproca, devidamente impressa no dólar: In God we trust), que lhe ofereceu, neste ano da graça de 2008, a oportunidade de mostrar ao mundo que seu povo não é burro, mal informado, racista, machista, carola e jingoísta. Como? Colocando numa mesma eleição presidencial uma mulher, um negro e um veterano de guerra branco e idoso. Uma oportunidade já desceu pelo ralo. A derrocada de Hillary Clinton não se deveu tão somente ao efeito bumerangue de suas mancadas durante as primárias, mas em boa (ou grande) parte à campanha sexista de que foi vítima, insuflada por um mídia assustadoramente misógina e por republicanos que ainda acham que a suprema conquista da mulher é ser a rainha do lar. Claro que, entre eles, havia muitos interessados, prioritariamente, numa vitória de Barack Obama, tido como um adversário mais fácil de derrotar na eleição de novembro. Por ser negro. Por ter nome islâmico. Por ser "liberal". Por ser elitista. Por dar mole para o terrorismo internacional. Por ser anti-semita. Por ser contra o barateamento da gasolina nas próximas férias de verão. Por achar que os pobres das regiões mais atrasadas do país se apegam em demasia à religião e adoram uma arma. Por ter uma oratória superior à de qualquer político branco em atividade nos EUA. Por não usar um broche com a bandeira americana na lapela. Só aí já cobrimos todos os defeitos dos americanos postos à prova nas eleições deste ano. É sinal de burrice ou ignorância acreditar que Obama seja um adversário mais frágil que Hillary. É prova cabal de racismo rejeitar Obama por ele ser negro ou mulato e ter nome islâmico. Quem, efetivamente, deu mole para o terrorismo foi o governo Bush. Se Obama fosse o anti-semita pintado por sionistas mal-intencionados, não teria sido tão efusivamente recebido pelo embaixador de Israel nos EUA, na celebração dos 60 anos do Estado israelense, nem contaria com o apoio entusiástico de um site especialmente criado e mantido por jovens judeus americanos: JewsForObama.net. Quanto ao resto, triste o país que sataniza o pensamento liberal como um disfarce ou subproduto do socialismo (outro sinal de burrice ou ignorância), reduz o conceito de elite (o que há de melhor num grupo ou numa sociedade, segundo os dicionários) à sua expressão mais pejorativa, e tão exagerado valor atribui a simbólicas manifestações de religiosidade e patriotismo. Deveria ser motivo de regozijo geral o fato de um negro, de origem humilde, haver estudado nas universidades de Columbia e Harvard, chegado ao Senado por um Estado importante como Illinois, e ter publicado dois livros que venderam quatro vezes mais que os 17 escritos por Hillary, McCain e Mike Huckabee. Em vez de orgulho, em determinadas camadas da população americana Obama desperta ressentimento e ódio, por ser tudo o que (realmente) é: um destaque na elite do país, com grandes possibilidades de governá-lo por quatro ou oito anos. Das várias conquistas nele ou por ele encarnadas, a mais notável é o triunfo da educação. Obama venceu na vida e na política porque educou-se. A educação é a chave da mobilidade social em qualquer país. Os trogloditas engravatados da Fox News e os demagogos da mídia evangélica ou não acreditam nessa cristalina evidência (outra prova de tacanhice) ou a refutam de má-fé, para fazer média com os "valores" (vale dizer, preconceitos) do que chamam de "classe trabalhadora branca", distinção eivada de racismo que até Hillary, no desespero, não se envergonhou de usar e manipular durante as primárias. Dia desses, Hillary (se Deus também protege os democratas, não a faz vice de Obama) ficará livre para lavar as mãos, tirar-lhes toda a lama, deixando Obama sozinho para o duelo com McCain. O candidato republicano pode até ser mais branco que Bush, mas tem 71 anos (Ronald Reagan, o mais velho a assumir a Casa Branca, tinha 69 ao ser eleito em 1980) e alguns pecadilhos a esclarecer (quando houver um só democrata na liça). Por mais que se esforce para livrar-se da pecha do continuísmo, antecipando a retirada das tropas do Iraque para 2013 (o mesmo prazo estipulado por Hillary, no início das primárias; o de Obama, em princípio, é 2010) e manifestando-se contrário à política ambiental do atual governo, McCain representa o status quo, o mais-do-mesmo, o déjà-vu. Como cumprirá sua promessa de sair do Iraque vencedor? Não deu detalhes. Suas idéias sobre o aquecimento global conseguiram desagradar a Casa Branca, os republicanos mais conservadores (no mau sentido da palavra), sem amenizar as apreensões dos ambientalistas. Não compartilho do paranóico ceticismo daqueles que prevêem & receiam uma vitória de McCain, com base na tática do medo (Obama é um terrorista árabe disfarçado! Obama quer acabar com Israel! Obama tem horror aos brancos! Obama não ama com fé e orgulho a terra em que nasceu! Obama tem linha direta com Osama bin Laden!) e na força do eleitorado "amedrontado, reacionário e esclerosado", para usar os qualificativos de Gary Kamiya, da revista eletrônica Salon. Acreditar nessa capitulação diante da jequice e do obscurantismo é desacreditar na capacidade de redenção da América, na fundamental vitória do novo sobre o velho, no sepultamento sem gala de uma era sinistra. E também, por que não?, na lógica das pesquisas de opinião pública. Apenas 29% dos americanos não discordam do modo como Bush vem governando o país e 68% da população são contra a guerra no Iraque. Acrescentando-se a esses números os estragos causados pela atual crise econômica, o aumento crescente do preço da gasolina e a escassez de alimentos, as perspectivas para os democratas me parecem irreversivelmente otimistas. A menos, é claro, que os americanos estejam dispostos a mostrar ao mundo que, além de racistas, ignorantes (em setembro de 2007, 33% dos americanos ainda acreditavam que Saddam Hussein estivera pessoalmente envolvido nos atentados de 11 de setembro), etc, etc, etc, também são masoquistas.

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