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Excesso de notícias na era digital é tema de livro de Margo Glantz

Membro da Academia Mexicana de Letras, escritora de 91 anos lança no Brasil 'E de Tanto Olhar Nada Via'

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Desconheço se já lhe deram um nome, tipo fan-fic, chick-lit, tell-all, cli-lit. Subgênero literário, minimalista e fragmentário, mix de memórias autobiográficas, citações e ocorrências encadeadas ou justapostas como num almanaque de curiosidades culturais, banais e transcendentes, já merecia ter ganhado designação específica. Afinal, escribas ilustres nele já se exercitaram, inclusive no Brasil; e volta e meia surge lá fora um novo praticante.

A escritora mexicana Margo Glantz Foto: Juan Boites/Relicário

Quem pôs esse ovo em pé, na segunda metade do século passado, foi o artista pop e escritor americano Joe Brainard. Seu I Remember inspirou o francês Georges Perec (Je me Souviens), os brasileiros Geraldo Mayrink e Fernando Moreira Salles (Memorando), o americano David Markson (seu mais prolífico adepto) e a mexicana Margo Glantz (Yo También Me Acuerdo). Dos seis citados, quatro já morreram. Se ainda vivo, Markson seria o único da turma mais velho (três anos) do que Glantz, que em janeiro chegou, lépida e fagueira, aos 91.  Premiada e cultuada no México e países de língua espanhola, com 25 livros narrativos e de ensaios publicados, ela chegou ao Brasil e ao português devagarinho. Faz 20 anos que Aparições foi aqui traduzido por Paloma Vidal, a mesma que assina a tradução de E Por Olhar Tudo, Nada Via, uma assemblage de observações, confissões e curiosidades como as de seus antecessores, editada pela Relicário. Glantz, que começou a escrever tarde na vida, extraiu seu aliciante título de um verso do Primeiro Sonho, da rebelde poeta barroca mexicana sóror Juana Inés de la Cruz (1651-1695), readaptado ao contexto da bulimia informacional em que há tempos vivemos, digerindo mal o que nossos olhos captam pelos mais variados meios eletrônicos.  Apesar desse e outros reparos fronteiriços (“o celular nos condenou à solidão”, “as redes sociais ajudam até se tornarem perversas”) não a tomem por ludita. Ela já foi obcecada pelo Twitter, atraída pelo desafio de dizer coisas em 140 caracteres; até que se cansou de sua algaravia (“todos falam, ninguém escuta”) e de suas “respostas efêmeras”. Mas permanece atuante na rede, tuitando sobre a pandemia, as mazelas do México e outras misérias deste mundo, atuais e passadas (o Holocausto, por exemplo).  Margo é judia laica. Seus pais, de origem russa, fugiram do nazismo via Ucrânia. Queriam ir para Cuba, mas a grana só deu para levá-los à Cidade do México, onde Jacobo, o chefe da família, começou vendendo pão, trabalhou como dentista e virou escritor, e Margo, sobremodo beneficiada pelo convívio com artistas e intelectuais foragidas do fascismo franquista, consagrou-se na vida acadêmica, no mercado editorial e no universo feminista latino-americano. As peripécias familiares dos Glantz foram narradas por ela em Las Genealogías (1981), talvez seu livro de maior sucesso. As ruminações coligidas em E Por Olhar Tudo, Nada Via foram concatenadas entre julho de 2016 e janeiro de 2018, em Coyoacán, o mítico bairro da capital mexicana onde também moraram Frida Kahlo, Diego Rivera e Trotski. Por falta de estirpe não encalharia nas livrarias.  Com seis epígrafes (de, entre outros, Kafka, Quevedo, a poeta polonesa Wislawa Szymborska e a indefectível sóror Juana), começa com uma indagação (“Ao ler as notícias, como decidir o que é mais importante?”) que ela responde com uma torrente de “notícias” dispostas num único e extenso parágrafo ao longo de 200 e poucas páginas, separadas apenas por ponto e vírgulas.  Se dispostas em parágrafos separados, como Markson fez em This is Not a Novel, Reader Block, The Last Novel e Vanishing Point, sua leitura seria bem mais fluida.  Mas o bazar de anotações de Glantz, confessadamente habitado pelo espírito de Walter Benjamin, tem tantas atrações, que a gente releva o sacrifício de a todo instante voltar atrás para verificar se paramos, equivocadamente, numa vírgula ao invés de um ponto e vírgula. Quais livros foram escritos em quartos de hotel? Quantos volumes possuía a biblioteca de Marlene Dietrich? (Resposta: cerca de 2 mil.) Quantos ossos tem o corpo humano? (Precisamente 206.) Quantas vezes a palavra “coração” aparece na primeira Bíblia impressa por Gutenberg? (973 vezes.)  Tudo isso talvez seja irrelevante e recenda àquelas coletâneas de trivia tão em voga no fim dos século passado, mas há muitos dados e retalhos de reflexões relevantes sobre a emigração no mundo, a nova secessão à espreita dos americanos, os suicidas, os alcoólatras, os insones e os narcisistas e ególatras, à disposição do freguês. Até Clarice Lispector, Lula e a Odebrecht são contemplados com uma menção no livro. O espírito crítico da escritora não alivia para ninguém. Nem para o politicamente correto, que, a seu ver, tornou-se “totalmente aberrante”. É contra mudar o desfecho da ópera Carmen, de Bizet, acusada de naturalizar o feminicídio, e considera expressões como “estar em situação de rua” um primor de hipocrisia. No posfácio por ela escrito para a tradução brasileira, Glantz dá conta de sua perplexidade diante da pandemia e detalhes sobre seu confinamento social: o não ter o que dizer do que viu da janela; seus limitados exercícios físicos; suas leituras sobre contágio, quarentena e destruição (Defoe, Sebald, Camus etc); sua aposta nos países governados por mulheres.  Vaidosa, Margo faz questão de se maquiar e usar brincos em casa. Perspicaz, foi uma das primeiras pessoas a prever que o Brasil seria o próximo epicentro mundial da pandemia. Olhem e vejam tudo que Margo escreveu.

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