Exilado da história

De como o mais esquecido dos presidentes acabou encostado numa biblioteca do governo

PUBLICIDADE

Por Monica Manir
Atualização:

Eu, Maria Thereza Fontella Goulart, viúva do ex-presidente da República dr. João Belchior Marques Goulart, venho através desta solicitar ao Ministério do Trabalho, na sua sede no Rio de Janeiro, na Av. Antônio Carlos, que me sejam entregues, de forma imediata, os pertences que amavelmente cedi na oportunidade em que era ministro o dr. Francisco Dornelles, que com a mais alta sensibilidade criou durante sua passagem pelo ministério o espaço "João Goulart"; as fotografias, painéis e objetos foram cedidos pela minha família para lembrar a figura de Jango como ministro do Trabalho do presidente Getúlio Vargas. Na época em que ocupou aquela pasta, dignidade não era qualidade dos homens, era obrigação. Faz um mês e uma semana que d. Maria Thereza protocolou sua indignação contra o que chamou de descaso da atual administração do Ministério do Trabalho. Ficara sabendo, por acaso, que os objetos passados em comodato ao ministério em 1997 para inauguração do espaço João Goulart tinham ido parar "nos porões". O acaso tinha nome: Museu João Goulart, em São Borja, berço e jazigo de Jango e Getúlio Vargas, onde a família, com participação da prefeitura e do governo do Rio Grande do Sul, pretende agrupar registros da vida do presidente. A sede do museu será a casa no centro da cidade onde João Goulart nasceu. Se as obras de restauro não patinarem, em março São Borja abre as portas de um capítulo enevoado da história brasileira. O Ministério do Trabalho esclarece que o material não está "nos porões". Como o prédio onde funcionava o espaço João Goulart pertence ao Tribunal Regional do Trabalho, este achou por bem ceder o ambiente a uma agência da Caixa Econômica Federal. Feito um peão à procura do seu galpão, copiando frase do jornalista Carlos Castello Branco, Jango foi parar na biblioteca da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, no mesmo prédio. O ministro Carlos Lupi teria enviado uma carta a d. Maria Thereza tentando esclarecer o mal-entendido e pedindo autorização da família para transferir esses objetos para o Centro de Referência do Trabalhador Leonel Brizola. Prometido para dezembro em Brasília, o centro contará com o acervo de 78 anos de criação do Ministério do Trabalho e do Emprego. Até o fechamento desta edição, a missiva não havia chegado. "Não adianta mais tirar do porão porque já o colocaram lá", diz d. Maria Thereza. "O ministro do Trabalho é progressista, é do PDT; se para ele esse patrimônio não teve valor, em São Borja terá", completa Denize, a filha. As duas estão no apartamento de Denize, que dá frente panorâmica para a Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio. Há porta-retratos até onde a vista enxerga. Se não falha a memória da primeira-dama, três deles teriam cópias no ministério: a de Jango sentado no chão com a filha e a inseparável cuia de chimarrão; a de Jango sereno com a faixa de presidente cruzada no peito; e a de Jango inflamado no comício da Central, às vésperas do golpe, com a estonteante Maria Thereza ao lado. Para quem saiu do País em 1964 com um tailleur, uma saia de couro, um blazer, um conjunto, duas camisas de seda, duas roupas para as crianças, alguns perfumes e uma dose de maquilagem, d. Maria Thereza conseguiu juntar relíquias e fotos num número considerável. "Depois que voltamos do Uruguai, várias pessoas foram nos entregando o que tinham guardado." Eram condecorações, comendas, cartas de presidentes, livros. As jóias, os móveis, os vestidos feitos pelo costureiro Dener e mais três carros - um Mercedes, um Opel e um Karmann Ghia -, todas propriedades particulares, sumiram da Granja do Torto. Aproveitando um ligeiro desvio para valores monetários, d. Maria Thereza afirma que as finanças vão bem, gracias. A primeira-dama mais jovem da história do país - tinha 23 anos no dia da posse do marido, em 1961 -, um dos dez rostos mais belos da revista People, comparada sem pudor a Jackie Kennedy, foi manchete na década de 90 de reportagens que evidenciavam rachaduras no seu orçamento doméstico. Em 1997, ela ganhou ação que lhe permitiu, como viúva de presidente da República, receber pensão equivalente à de viúvas de ministros do Supremo Tribunal Federal. Também recebe dinheiro de arrendamento de campo no Rio Grande do Sul. "Vai tudo para os netos", avisa. Seis deles, todos homens, são de João Vicente, o filho mais velho. Denize tem um par de mulheres. A filha, formada em História pela PUC-RJ, insiste no valor social da performance política paterna: "É um presidente que foi esquecido, o único não anistiado, que ainda morreu fora de seu país". A família reclama que, mesmo após o falecimento de Jango, os entraves continuaram. À revelia de d. Maria Thereza, em 1976 o corpo do marido foi enterrado em São Borja, em cerimônia tomada por militares: "A gente não podia sequer respirar, foi horrível". Ela preferia a permanência do companheiro no Uruguai, onde ele era carinhosamente chamado de presidente pela população local. Hoje os Goularts reivindicam atenção ao projeto de criar um memorial e um instituto que resgate documentos do mandato dele e do que aconteceu depois. Receberam o terreno do ex-governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, mas até agora não sabem se o receberam mesmo. Faltam parceiros, embora Oscar Niemeyer tenha dado sua contribuição. "Ele fez um desenho bonito, muito simples e não cobrou nada por isso", conta Denize. O arquiteto imaginou uma seta vermelha trincando uma meia-circunferência. Sua frase na justificativa do projeto: "Quem conhece a história de João Goulart sabe como ele foi violentamente afastado do seu cargo com o golpe militar de 1964, que durante 20 anos pesou sobre o nosso país. E isso eu procurei marcar na minha arquitetura, de forma mais clara, com uma grande flecha vermelha a atingir a cúpula projetada". Um dos organizadores de A Ditadura em Debate: Estado e Sociedade nos Anos do Autoritarismo, com pós-doutorado recente sobre as reformas de base da era Jango, o professor de História Moderna da Uerj Oswaldo Munteal Filho quer cambiar a pauta da reportagem: "Em vez de apenas levantar o esquecimento, precisamos ser mais afirmativos". A seu ver, o tripé de reformas do presidente nos planos agrário, tributário e universitário ainda é contemporâneo porque propunha um Estado social. Entusiasma-se. "Não havia nada de fraco e débil em Jango, como quiseram fazer parecer depois do golpe, tanto que ele se manteve perto, no Uruguai, com a idéia de resistir no exílio." Também gosta de ressaltar certo perfil heróico do presidente, no sentido heróico de tragédia grega. Diz Munteal que, em entrevista a um jornal da Ioguslávia, logo após saber da renúncia de Jânio Quadros, João Goulart rebatera assim: "O que eu pensei nessa hora? Só me lembrei do suicídio do presidente Vargas". No entanto, o que prevaleceu na sua biografia foram os senões e as incongruências. "Era visto ao mesmo tempo como responsável e mulherengo, autor de reformas de base e rico pra caramba." Agora, pergunta, como pôde um homem tão esculhambado ser protagonista de tudo? "Deputado estadual constituinte, deputado federal, ministro do Trabalho, Indústria e Comércio de Vargas, presidente nacional do PTB,duas vezes vice-presidente e presidente, enfim." A garotada, segundo o professor, mal faz idéia dessa dimensão. Na inauguração do Ciep João Goulart, no Rio de Janeiro, Munteal foi dar uma palestra. Começou assim: "Quem é João Goulart?" O silêncio gritou. A família entende que documentários podem auxiliar nesse resgate histórico. Denize co-produziu o filme Jango, de Silvio Tendler, e João Vicente compareceu à pré-estréia nessa semana de Jango em 3 Atos, feito pela TV Senado e dirigido pelo jornalista Deraldo Goulart, cujo sobrenome é mera coincidência gaúcha. Deraldo não é parente da família. O diferencial do seu filme, previsto para ser exibido hoje e no próximo domingo, foi incluir a polêmica que envolveu a morte do presidente. Oficialmente, Jango teria sucumbido a um ataque cardíaco nos braços de d. Maria Thereza, na cidade argentina de Mercedes, justamente quando demonstrava "uma disposição bárbara" após emagrecer 19 quilos e diminuir o cigarro. No entanto, no depoimento de Mario Neira Barreiro, ex-agente do serviço secreto uruguaio, preso desde 2003 na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, no Rio Grande do Sul, consta que Jango teria sido morto a pedido do governo brasileiro. Em Copacabana, já no apartamento da mãe, João Vicente ainda se indigna com o tratamento dado pelo ministério às fotos e objetos de Jango. "Esse é um local que preza a tradição, e meu pai foi o único ministro do Trabalho que chegou à Presidência". Denize prefere destacar o ataque dos dois lados, tanto da direita quanto da esquerda, que o pai recebera durante o mandato. D. Maria Thereza lembra a extrema timidez do marido. "Ele falava muito bem em público, mas era de Peixes, não era de dizer o que sentia, era muito para dentro." Denize levanta os olhos com reserva. É como o pai. CONTRADIÇÃO "O ministro é do PDT. Se para ele esse patrimônio não teve valor, em São Borja terá" IMAGEM "Não havia nada de débil em Jango, como quiseram fazer parecer após o golpe" RESERVA "Ele falava muito bem em público, mas era de Peixes, não era de dizer o que sentia"

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.