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Expoente dos editores independentes, Eduardo Lacerda chega aos mil livros publicados pela Patuá

Milésimo livro da editora paulistana em nove anos é peça de Hilda Hilst 'As Aves da Noite'

Por André Cáceres
Atualização:

Era uma tarde abafada de verão em São Paulo e o sol não dava trégua para o editor Eduardo Lacerda, que suava para galgar a pé as poucas quadras que separam sua casa da Patuscada, o bar-livraria que ele mantém na rua Luís Murat. Essa via estreita e movimentada é batizada em homenagem ao fundador da cadeira n.º 1 da Academia Brasileira de Letras, nome propício para sediar um dos espaços culturais mais efervescentes e uma das editoras independentes mais importantes da cidade. 

Após nove anos, a Patuá chega à marca de mil livros com As Aves da Noite, de Hilda Hilst, peça de 1968 que relata os momentos derradeiros de seis prisioneiros de um campo de extermínio nazista. “Eu amo a Hilda. Minha próxima tatuagem é um verso dela: ‘Carrega-me contigo, pássaro-poesia’”, diz Lacerda ao Aliás em um dos ambientes coloridos e atulhados de livros da Patuscada.

Eduardo Lacerda, editor da Patuá, que está chegando a mil livros publicados Foto: Alex Silva/Estadão

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O homem de mil livros tem olhos amendoados, de aspecto suplicante, e bochechas carnudas ocultas pela barba comprida e desgrenhada. No entanto, sua camisa com motivos floridos abotoada até o peito destoa de sua figura meio messiânica, meio quixotesca. Ao redor dele, há tantos livros que a antiga casa que abriga a Patuá já teve de passar por uma reforma para impedir o chão de ceder sob o peso do papel. Apesar disso, para ele esses objetos não representam carga alguma: “patuá” significa amuleto, e é isso que livros sempre foram para ele.

“A maior riqueza de um editor é o seu catálogo”, diz ele, que, desde Carta Branca (2011), de Juliana Bernardo, primeira obra da Patuá, se orgulha de ter publicado finalistas e vencedores do Jabuti, Prêmio São Paulo, Oceanos, Açorianos, Casa de Las Américas, entre outros. Alguns dos principais nomes editados pela Patuá nos últimos anos são Micheliny Verunschk, Maria Fernanda Maglio, Paula Fábrio, Manoel Herzog, Cinthia Kriemler, Déborah Dornellas, Luiz Bras, Nelson de Oliveira, Guilherme Gontijo Flores, Braulio Tavares e Lubi Prates. 

A descoberta das letras 

A trajetória de Lacerda teve um ponto de partida pouco usual para editores. Quando criança, gostava de compor versos, mas não nasceu numa casa cheia de livros, como a Patuscada. Tampouco a escola municipal em que estudava, na Vila Ema, zona leste de São Paulo, oferecia uma biblioteca ampla. A leitura vinha pelo livro didático, que ele lia inteiro na primeira semana de aula. “A maior deficiência era não ter alguém para falar: ‘Leia esses livros, isso pode ser legal’. Muitos leitores se perdem aí”, lamenta ele. “Não existe uma formação de leitores dentro da escola.” 

Eduardo Lacerda atrás do balcão da Patuscada Foto: Alex Silva/Estadão

Embora tenha se criado em São Paulo, Eduardo nasceu em Porto Alegre. Seu pai, Claudinei, trabalhava em uma loja de departamento e foi transferido para lá com a promessa de um cargo melhor – o que não aconteceu. Ele e a mulher, Marilda, decidiram voltar do sul pouco depois que os filhos nasceram para montar uma confecção de roupas. Eduardo brinca dizendo que não se sente gaúcho: "Não sou do chimarrão".

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Aos 14 anos, ele e o irmão receberam alguns trocados dos pais. Flávio comprou uma calça; Eduardo, um livro. “E eu levei uma bronca”, conta, rindo. “Como assim, você gastou seu dinheiro em um livro? A gente deu para você comprar algo para usar”, disseram os pais na ocasião. Embora tenham passado a compreender e incentivar seu gosto pela leitura, os primeiros anos de Eduardo foram menos cercados de livros que dos tecidos vendidos pela família em uma feira livre.

“Uma parte da minha infância foi dormindo dentro de uma Perua esperando acabar a feira para ir para casa”. Depois da barraca, a família teve uma loja na rua 25 de Março, mas o negócio não durou muito. Eles faliram e ficaram devendo para um agiota – dívida que hoje seria impagável se, pouco depois, o homem não tivesse morrido, em uma reviravolta digna de um thriller. Hoje, Marilda e Claudinei ainda têm uma confecção e planejam montar um orquidário, garantindo um trabalho tranquilo durante a velhice.

Um editor em formação

Eduardo tinha 16 anos quando teve o primeiro lampejo de editor. Imprimia uma fanzine sobre a banda Roxette na casa de uma ex-namorada e distribuía pelo correio. Na época, a profissão ainda não lhe ocorria (almejava ser professor de português), mas quando foi aprovado para a segunda fase da Fuvest, largou o emprego de atendente de telemarketing em Guarulhos para se dedicar às letras. “Era um mundo completamente novo, com milhões de livros, pessoas que leram muitas coisas e eu não tinha lido nada”, recorda. Se sua fanzine havia durando pouco, o ímpeto curatorial só fazia crescer.

Eduardo Lacerda na sala cujo piso teve de reforçar por conta do peso dos livros Foto: Alex Silva/Estadão

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Na FFLCH/USP, havia um mural onde os alunos deixavam poemas fixados. Não tardou para que Eduardo assumisse a responsabilidade: trocava a camurça e os barbantes, recebia os versos, imprimia e fixava-os no “cordel literário”. Ali nascia o embrião da primeira revista que ele lançaria em 2002, com poetas contemporâneos.

Nos anos seguintes, a veia de agitador cultural se manifestaria mais claramente. Lacerda editou publicações como o jornal Casulo e promoveu ações inusitadas como a Flap (Festa Literária Alternativa a Paraty), em 2005. Descrito por ele como uma reunião de “um monte de jovens que não tinham grana para ir à Flip”, o evento levou cerca de 500 pessoas ao espaço do grupo teatral Satyros e foi notícia nos principais jornais da época. 

Ainda durante os anos de estudante, Eduardo ensaiava montar uma editora, mas sempre esbarrava na questão financeira: para se publicar um livro, era necessária uma tiragem mínima de 500 exemplares, muito além do que podia bancar. Como brincadeira, dizia que o slogan de sua casa editorial seria “Eles gastarão os últimos centavos para publicar os primeiros livros”. 

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Isso mudou em 2010, quando soube que a editora Hedra havia adquirido uma nova máquina digital que viabilizaria pequenas tiragens, de 50 a 100 exemplares. O modelo de negócio ainda era praticamente inexplorado, mas ele sentiu que ali se abria uma oportunidade de concretizar seu sonho.

O mercado editorial mudou muito desde que a Patuá surgiu. Se hoje é possível abrir uma editora com um cadastro de microempreendedor individual, Eduardo teve de contratar um contador que, ainda hoje, representa um custo fixo para a administração de seu negócio. 

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Na época, ele teve de aprender a pedir o registro de ISBN para seus livros em um complexo processo que envolvia enviar um formulário impresso, fazer um pagamento pessoalmente no banco e aguardar até 15 dias — hoje, tudo isso pode ser resolvido rapidamente pela internet. 

Atualmente, há uma grande variedade de gráficas que trabalham com tiragens pequenas, até mesmo de dez exemplares, sem perder a qualidade. “O mercado ficou muito mais fragmentado e, se isso é ruim, porque o livro precisa de um tempo para acontecer, pelo menos há mais livros circulando. Não necessariamente mais leitores, mas hoje temos muito mais livros”, analisa ele.

Mil livros mais tarde

“Eu sou meio caótico, então faço tudo ao mesmo tempo. Enquanto estou embalando livros, que é automático, estou lendo e-mails, faço triagens dos originais e…” 

...E Lacerda é interrompido vez por outra pelos bipes do celular.

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Muito mais que um mero editor, além de selecionar originais, pensar os projetos gráficos, revisar e divulgar, ele vende livros e bebidas durante os lançamentos e saraus que a Patuscada sedia, negocia com autores, embrulha e envia os livros vendidos pelo site da editora (a Patuá não distribui em livrarias), tudo isso sozinho, sendo que ele começou publicando uma média de três livros por mês e hoje lança até 20, mais que a maioria das editoras grandes do País. Por isso, é difícil flagrá-lo em um momento de descanso. 

Ler por prazer? Nem pensar. “É a minha maior frustração. Eu queria muito ter tempo para falar: ‘Isso estou lendo para mim’”. Se pudesse parar tudo e abrir um livro hoje, ele escolheria Sobre Gatos, da Nobel Doris Lessing, mas entre seus autores favoritos ele cita García Márquez ("Dele eu li quase tudo!"), Drummond, Bandeira, Torquato, Mário Faustino e, claro, Hilda. 

Esse Dom Quixote não está completamente sozinho: sua mulher, Pricila Gunutzmann, tem ajudado a cuidar da parte financeira da Patuá. Seu auxílio é importante, uma vez que Lacerda, tímido e um tanto retraído, às vezes parece ter pudor de cobrar pelos livros, esses amuletos tão preciosos. Seu amigo, adequadamente chamado Ricardo Escudeiro, é também seu Sancho Pança e assistente editorial há anos. Mas ser quixotesco não é problema quando se trata de literatura: é devido à veia sonhadora que projetos que dificilmente teriam apoio de outras editoras ganham corpo.

Esse foi o caso de Zoobreviver, livro de poemas submetido com a seguinte apresentação: “Meu nome é Eugênio Ramos Gianetti, sou morador de rua e alcoólatra.” Eduardo ficou impressionado com a qualidade dos poemas, mas a princípio não respondeu o e-mail (enviado por uma bibliotecária a pedido de Eugênio) por não saber se conseguiria viabilizar um projeto como aquele.

O acaso deu um empurrãozinho: eles se conheceram pessoalmente em um bar, pouco tempo depois. Eugênio, hoje com 67 anos, “parecia o Gandalf, com aquele cabelo branco, comprido”, descreve Eduardo. "Pediu uma, duas vodcas" e puxou papo com o editor. Conversaram sobre literatura, o poeta disse que lia os livros da Patuá em uma biblioteca pública e mostrou alguns dos seus versos. 

Na festa de sete anos da editora, em 2018, Eduardo lançou Zoobreviver. No dia, o editor pagou até um hotel para o poeta. "Eu não iria deixar ele dormir na rua depois do lançamento, né?" Agora, Eugênio planeja um segundo volume de poemas. 

Nem todas as histórias curiosas são felizes, é claro. “Teve autor que foi no Reclame Aqui falar que ia fazer um B.O. porque eu recusei um livro dele”, lembra Lacerda, rindo do incidente. “Publicar um livro ainda é uma forma de prestígio nesse país. Às vezes, as pessoas publicam mais pelo ego do que por ter algo a dizer, e é o tipo de escritor que a gente tenta barrar na Patuá.”

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Apesar disso, Lacerda reconhece um grande defeito: tem muita dificuldade para dizer não – algo fundamental para um editor. “Mas aprendi que se eu falar sim para todo mundo, não vou dar conta de fazer. Falar não desde o início é poder falar sim para outras coisas. É ter tempo para abraçar outro projeto.” 

Para alguém que só publica escritores vivos, aprender a dizer não foi fundamental. Os únicos autores mortos que Eduardo publicou ao longo dos nove anos da Patuá foram justamente Hilda Hilst (a milésima) e Mora Fuentes, companheiro de Hilda. Ao ser questionado se algum autor publicado pela Patuá já morreu, Eduardo baixa os olhos e murmura: “Uns dois, três”. Mas ele não tarda a abrir um sorriso e desembainhar seu quase inabalável otimismo: “Mas se tem essa coisa da morte, tem a vida também. Uns 15 já foram pais”.

Poder da palavra

Recentemente, um ladrão invadiu sorrateiro a Patuscada e levou alguns objetos, incluindo um saxofone que adornava o espaço. Por sorte, respeito ou ignorância, o sujeito deixou para trás os três prêmios Jabuti que ficavam expostos sobre o balcão. Agora, Lacerda deixa as estatuetas em casa – por isso, ele subia a Luis Murat com seus prêmios naquela tarde ensolarada. 

Entre as pessoas que o aguardavam, havia um poeta brasileiro radicado em Portugal, Rafael Mantovani. O rapaz havia cruzado o Atlântico para, entre outras coisas, comprar um livro da Patuá e acabou saindo dali com quatro, sendo dois presentes. “Eu dei muita sorte de os poetas terem me abraçado. Então eu tento hoje abraçar as pessoas, ser essa ponta generosa”, afirma Lacerda.

Para ele, o poder da palavra não pode nunca ser subestimado. “Mesmo um Estado teocrático anti-intelectual começa com a palavra – a de Deus. No princípio, era o verbo. Não existe nada sem a palavra. Quando invadiam um país, a primeira coisa que se fazia era trocar a língua, forçar a usar o seu idioma. Eles entendem que a resistência vem pela arte. Eles têm medo”, acrescenta, em seu auto de fé literário.

É por isso que ele sobe, dia após dia, com suas pernas finas porém firmes, a rua Luís Murat. Mil livros depois, Eduardo Lacerda ainda acredita, como quando imprimia poemas para colar no mural da faculdade, que pode mudar o mundo pela palavra.

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