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Exposição examina como a elite foi retratada ao longo dos séculos

'High Society', em cartaz na Holanda, tem uma obra de Manet emprestada do Masp e trabalhos de Rembrandt a Munch

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
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Uma exposição no Rijksmuseum de Amsterdã, High Society, em cartaz até 3 de junho, reúne lado a lado, pela primeira vez, dois retratos em tamanho natural pintados por Rembrandt. Realizados pelo artista aos 28 anos para celebrar as bodas do casal de origem belga (que se instalou na Holanda) Marten Soolmans e Oopjen Coppit e adquiridos há dois anos pelos governos francês e holandês por €160 milhões, os retratos, que acabaram de ser restaurados, também poderão ser vistos a partir de setembro no Museu do Louvre (os dois museus acertaram alternar a exibição das telas). A exposição do Rijksmuseum reúne 35 obras-primas que cobrem quatro séculos, de 1514 ao fim do século 19.

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Marten Soolmans e Oopjen Coppit, casal retratado por Rembrandt Foto: Rijksmuseum

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Entre as pinturas, todas elas retratos em tamanho natural, estão cavaleiros, aristocratas, príncipes e milionários pintados por Cranach, Veronese, Velázquez, Van Dick, Gainsborough, Joshua Reynolds e Munch. O Brasil está representado por uma pintura do francês Manet do acervo do Masp, que emprestou ao Rijksmuseum a tela O Artista (1875), retrato do amigo do pintor, Marcellin Gilbert Desboutin.

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Manet é certamente um dos highlights da exposição, curada pelo canadense Jonathan Bikker, filho de holandeses. Porém, o destaque maior de High Society é mesmo o casal de Rembrandt, o único pintado em tamanho natural pelo artista, que deixou um legado de 324 pinturas, entre elas 94 retratos. Entre eles, claro, existem obras de grandes dimensões, das quais o exemplo maior é a Ronda Noturna, que está no mesmo Rijksmuseum. No entanto, o retrato do casal da mostra High Society é importante não só pelo tamanho.

Ao que tudo indica, madame Oopjen Coppit foi “melhorada” por Rembrandt, o que equivaleria hoje a um Photoshop da socialite. Muitos pintores recebiam, aliás, reclamações de seus clientes. A condessa de Sussex, por exemplo, não gostou do retrato pintado por Van Dick, apontando a assimétrica relação do rosto com o resto do corpo. Feia ou bonita, o fato é que Oopjen foi considerada a “Mona Lisa dos Países Baixos” pelo crítico francês Théophile Thoré (1807-1869), a quem se atribui a redescoberta de Vermeer na segunda metade do século 19.

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Na tela, Oopjen surge com um pretinho básico, uma imposição da moda na Holanda protestante do século 17. Quando Rembrandt pintou Oopjen e seu marido, em 1634, a Holanda passava por um período de puritanismo extremo. Segundo o curador, “embora o preto fosse associado a qualidades como dignidade e modéstia, o fato é que a cor estava na moda na Holanda, seguindo o gosto espanhol e francês”.

“Mais do que a pose ou a decoração dos ambientes, a roupa é o que fazia o retrato de corpo inteiro e tamanho natural a expressão máxima de glamour e elegância da elite”, complementa o curador de High Society. Oopjen, segundo ele, tinha plena consciência do que significava moda (ela não dispensa o leque de plumas, o véu negro e a “mouche” feita de seda e colada ao rosto com goma arábica).

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Há roupas para todos os gostos na mostra. E há até quem dispense não só os acessórios como a própria roupa. O aristocrata holandês John Colterman (1565-1616), burgomestre de Haarlem, não hesitou em posar nu como Hércules para o pintor Hendrick Goltzius (1558-1617). A tela, alegoria da vitória da virtude (Hércules) contra o mal (o gigante ladrão Cacus), é um exemplo do humor que tornou célebre os retratos de Franz Hals e sua escola. A tela de Goltzius, pintada em 1613, aliás, pertence à coleção do museu Franz Hals de Haarlem.

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Quando não estão nus, os aristocratas da exposição High Society vestem os mais extravagantes modelos. O coronel escocês William Gordon se fez retratar por Pompeo Batoni (1708-1787) em 1766 junto a fragmentos da Roma imperial, cenário reproduzido em dezenas de outros retratos do pintor italiano. Mas, para Gordon, explica o curador da mostra, essa Roma falsa tinha um significado especial. “O Império Romano jamais conseguiu conquistar o território setentrional da Escócia, enquanto que, com a participação da Escócia, os militares britânicos conseguiram criar um império ainda maior que Roma”.

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Se muitos buscavam nos retratos uma alegoria do poder que gostariam de ter (ou que efetivamente tinham), outros faziam questão de reafirmar sua independência moral ou ideológica. Foi o caso do médico francês, descendente de italianos e suíços, Samuel-Jean Pozzi (1846-1918), amigo do escritor Marcel Proust e conhecido por seduzir suas pacientes (ele é o “pai” da ginecologia francesa). O pintor John Singer Sargent (1856-1925) pintou Pozzi vestido num sensual roupão de banho vermelho, sugerindo que essa, afinal, era a roupa que ele mais usava. Sargent, gay, era fascinado por seu modelo, um homem de fato bonito que encontrou a morte em seu quarto, assassinado por um paciente cuja impotência ele não conseguiu curar, de acordo com pesquisa feita pelo curador de High Society.

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Sargent, aliás, é autor de um retrato que provocou escândalo na época. Ele retratou a norte-americana Virginie Amélie Avegno Gautreau, que se mudou para Paris e casou com o banqueiro Pierre Gautreau (ela foi paciente e amante do doutor Pozzi). Os retratados de High Society, como se vê, não são todos príncipes ou princesas. Há até ex-prostitutas entre eles. Por volta de 1776, ainda segundo a pesquisa do curador Jonathan Bikker, madame Charlotte Hayes descobriu nas ruas de Londres uma linda menina de 12 anos pedindo esmolas ao lado do pai cego, no melhor estilo dos contos de Dickens. Chamava-se Emily Warren. Madame ensinou-a a andar, a conversar e, principalmente, a seduzir os homens em seu refinado bordel. O pintor Joshua Reynolds (1723-1792), um dos mais influentes retratistas da Inglaterra, pintou-a como Taís, a cortesã que persuadiu Alexandre, o Grande a incendiar o palácio real de Persepolis. Emily surge, imponente, segurando uma tocha de fogo na mão esquerda, que também pode ser vista como um símbolo fálico.

Reynolds pintou outras socialites inglesas que estão na mostra, como a condessa de Harrington, Jane Fleming, que adorava um jogo de azar, vício menor se comparado à ânsia de amar de sua irmã mais jovem, Lady Worsley, que parou de contar seus amantes no número 27.

Voltando aos Países Baixos, a introdução da moda dos retratos em tamanho natural, em 1580, na terra de Rembrandt, viu surgir os grandes conjuntos das guardas civis, pinturas de dimensões pantagruélicas como a sua Ronda Noturna (1639/42). Mas o mérito da primeira pintura independente que retrata um nobre pertence, segundo a pesquisa do curador, ao artista veneziano Carpaccio (1465-1525), um cavaleiro de armadura (1505) que muitos críticos identificam como um santo ou o conde de Urbino (não há consenso sobre o modelo).

Por fim, mas não menos importante, a High Society do Rijksmuseum se rendeu não a um nobre, mas a um plebeu vagabundo retratado em 1873 por Manet, Marcellin Desboutin. Oriundo de uma família aristocrática, ele estudou Direito e escreveu peças antes de se tornar aluno de Thomas Couture, também mestre de Manet. Marcellin era um bon vivant. Adorava viajar. Em 1857 comprou uma villa em Florença. Seu estilo de vida o deixou sem um tostão. Manet o encontrou no Café Guerbois, em Paris. Seu modelo também posou para a famosa tela de Degas, O Absinto, ao lado da atriz Ellen Andrée (a pintura integra o acervo do Museu D’Orsay). O curador da mostra High Society ficou radiante quando o Masp aceitou emprestar o retrato para a exposição, observando como o tratamento do espaço por Manet deve algo a Velázquez. Um dos últimos grandes retratos em tamanho natural é o que Munch fez de Walther Rathenau, industrial judeu que serviu de modelo para Musil escrever O Homem Sem Qualidades. Um assombro

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