Exposição explora a relação entre arte e nudez no Renascimento

Mostra no Museu Getty de Los Angeles demonstra como o corpo nu sempre esteve ligado à simbologia religiosa

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Por Philip Kennicott
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Boas exposições são aquelas que complicam as coisas sem torná-las confusas. Por esse critério, a mostra The Renaissence Nude, do Museu Getty, em Los Angeles, é um belo exemplo, envolvendo em camadas de complexidade o senso geral de como o corpo nu se tornou objeto de arte no século 15. 

'Allegory of Fortune', óleo sobre tela pintado por Dosso Dossi (Giovanni di Niccolò de Lutero) por volta de 1530 Foto: Getty Museum

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O enfoque da exposição não é apenas a nudez heroica da Itália, o corpo ideal inspirado na redescoberta da antiga arte, mas também o nu através de toda a Europa. A mostra navega pelas várias forças em ação na época – incluindo mudanças nas práticas religiosas e novos e mais rigorosos poderes de observação – e como essas forças levaram a uma disposição voraz para se representar o corpo despido. E confirma o óbvio: que o desejo sempre foi parte do prazer na contemplação da figura nua, não importando quão piedosa, alegórica ou mitológica fosse a narrativa por trás dessa figura. 

Com curadoria de Thomas Krens, a exposição abrange mais de 120 anos, começando em 1400, e tem mais de cem obras. Há trabalhos de Giovanni Belline, Donatello, Albretch Durer, Jan Gossaert, Antonio Pollaiuolo e Ticiano, incluindo pinturas, esculturas, desenhos (entre eles, estudos anatômicos de Leonardo) e gravuras. A mostra também põe um foco especial em artistas franceses, que produziram uma espécie de história oculta do nu em ilustrações de livros religiosos, com imagens destinadas à contemplação e deleite privados e nem sempre incorporadas à compreensão mais ampla do nu durante esse período. 

Duas amplas tendências norteiam a emergência do nu como tema. Havia a Renascença, comumente entendida como um novo despertar das energias intelectuais que estimularam os artistas a uma observação mais minuciosa do mundo, inclusive do corpo humano. Mas havia também um impulso religioso – em busca de uma cristandade mais pessoal, mística e intensa, que com frequência assumia forma visual. O desejo de se extasiar com temas religiosos, consumir sua substância visual, levou a representações mais sensuais de figuras religiosas chave, incluindo, na França, Betsabá, que Davi viu banhando-se. O mercado de livros religiosos e de oração, geralmente encomendados por pessoas ricas, inspirou artistas a buscar novas representações e ousados refinamentos para as preciosas pinturas miniaturizadas desses livros. Em alguns casos, os artistas seguiam diretamente o gosto sexual dos aristocratas para os quais os livros eram feitos. O duque de Berry, por exemplo, que encomendou uma pintura de jovens penitentes religiosos se autoflagelando, gostava de homens da classe trabalhadora e de garotas jovens. 

Diferentes entendimentos do que era permitido e do que era impróprio também influenciaram o desenvolvimento da forma nua. Na Itália do início do século 15, imagens de São Sebastião nu tiveram grande destaque, em parte porque não era apropriado desenhar mulheres a partir de modelos nus. Um desenho de figuras femininas de Pisanello, provavelmente de meados dos anos 1420 ou início dos 1430, pode ou não ter sido feito a partir de modelos femininos reais, como muitos acreditam; se foi, porém, é um dos primeiros desenhos dessa categoria. Mais curioso é um esboço de autoria de Fra Bartolomeo, que contornou o problema de desenhar mulheres nuas usando um manequim como modelo para a Virgem Maria. A Virgem é mostrada na pose tradicional, abraçando o corpo do Cristo morto, mas ela tem a parte superior do corpo e os braços musculosos de um homem. 

Forças puramente artísticas também nortearam as novas imagens. A tendência ao virtuosismo, a refinar trabalhos anteriores, pode explicar o discreto surrealismo da Batalha dos Dez Homens Nus, de Pollaiuolo, gravura que teve grande influência na Europa. Ela mostra um combate brutal entre dez guerreiros despidos com espadas, flechas, machados e adagas. O contexto desse banho de sangue nunca foi explicado. A motivação pode ter sido simplesmente mostrar habilidade em desenhar a figura masculina em diferentes poses.

A observação deve ter influenciado no desenvolvimento da representação do corpo nu. Observação, no entanto, também leva a idealização, e para muitos artistas, esboçar o corpo nu não significava capturar um momento fugaz de uma figura viva, mas aperfeiçoar a forma dessa figura para além das particularidades de seu corpo. Artistas como Durer procuraram esquematizar o corpo, identificar suas proporções e determinar a relação ideal de uma parte com as outras. Outros, como Michelangelo, partiram dessa idealização para criar o que ainda hoje se admira como corpos de super-homens, perfeitos além dos limites da razão. De certo modo, isso completou o ciclo da Renascença, do argumento inicial da representação medieval do corpo para uma outra fórmula – a dos nus “sarados”, supostamente “clássicos”, que se veem nas figuras da Capela Sistina (uma imagem da Capela encerra a mostra do Getty).

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Percorrendo-se a exposição, nota-se o desejo e a sexualidade atuando de modo surpreendentemente aberto. Uma seção da mostra tem foco no uso de pessoas de verdade como modelos para figuras religiosas, incluindo uma pintura do século 15 de autoria do artista francês Jean Fouquet na qual a Virgem é mostrada com os seios descobertos. A inspiração para o rosto da Virgem veio provavelmente de uma conhecida beldade da época, Agnes Sorel, amante do rei Carlos. 

Outra seção aborda o desejo supostamente ilícito, incluindo a homossexualidade, que é vista numa expressiva xilogravura de uma cena de banho de Durer na qual homens olham uns para outros com um interesse acima do comum, e numa gravura de Marcantonio Raimondi de Apolo e Admeto – uma alegoria do desejo pelo mesmo sexo tomada emprestada da mitologia grega. 

Representações de corpos mutilados ou mostrando sinais de sofrimento constituem não apenas importantes exceções à tendência de se idealizarem corpos perfeitos, mas enfatizam o grau em que sadismo, masoquismo e outras variações sexuais eram comuns em narrativas religiosas. 

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Entre as imagens mais gratificantes da exposição, porém, estão aquelas que sugerem a variedade de tipos de corpos que eram considerados belos. Uma imagem de Durer de uma mulher rezando, vista por trás, mostra uma beleza fornida e compacta, enquanto várias imagens de São Sebastião pintam a beleza masculina como andrógina e até feminina. Um desenho de Hans Baldung, The Ecstatic Christ, mostra um Cristo no corpo poderoso de uma figura clássica contorcendo-se no chão, com a ferida da crucificação claramente visível em uma das mãos. Captado entre a morte e a ressurreição, esse Cristo tem a outra mão sob uma dobra de tecido que cobre seus genitais, num gesto de perplexidade, mas poderosamente erótico.

O desenho de Baldung lembra o visitante de algo que se tornou um poderoso leitmotif da exposição: o de que muitas das obras insistem em funcionar de modos violentamente diferentes, até autocontraditórios. O religioso não exclui o erótico; o sagrado e o profano coabitam. E não é a mente moderna que, maliciosa e obscena, enxerga sexo nessas imagens. Na verdade, a mostra nos deixa com a sensação de que o tempo presente é por demais puritano e que temos ainda um longo caminho a percorrer antes de compreender como o passado foi sempre foi tão maravilhosamente voluptuoso.  / Tradução de Roberto Muniz 

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