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Exposição 'Levantes' medita sobre a natureza humana de se rebelar

Mostra organizada pelo filósofo francês Georges Didi-Huberman permanece no Sesc Pinheiros até 28 de janeiro

Por Walnice Nogueira Galvão
Atualização:

“Por que se amotinam as gentes e os povos imaginam coisas vãs?”, já indagava a Bíblia (Salmos 2:1). Se o leitor acompanhou à distância a Primavera Árabe, que, despontando na Tunísia, se alastrou da Praça Tahrir no Cairo a toda a região, não poupando qualquer país. Se admirou os descontentes do país mais rico do mundo no Occupy de Nova York, sinal de que os Estados Unidos podem ser bem diferentes de Ruanda ou Darfur em riqueza mas nem tanto em direitos humanos. É só ver quem pagou a fatura da bolha imobiliária de 2008 e da quebra da Bolsa em 2011: os pobres, é claro. Como agora estão pagando na União Europeia e no Brasil. 

+++Filósofo Georges Didi-Huberman reflete sobre o sentido da revolta

Crianças brincam de guerra em 1936, numa Espanha em conflito Foto: Agustí Centelles/Sesc Pinheiros

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Se concordou com o livro Indignai-vos, do diplomata Stephane Hessel que, herói da Resistência francesa e sobrevivente de Buchenwald, colaborou na redação da Declaração dos Direitos do Homem, no pós-guerra. Alarmado com a crescente desigualdade que torna mundo afora os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, somada à ameaça de destruição do planeta mediante a exploração desenfreada dos recursos naturais, Hessel escreveu em 2011 um livrinho inspirador que se tornou um manifesto pela justiça social. O título seria assumido por vários movimentos de protesto, a começar por Los Indignados da Espanha. 

+++'O artista se tornou a figura da liberdade', diz filósofo Didi-Huberman

Um leitor como esse deve ter-se perguntado porque estes anseios de liberdade se extinguiram sem deixar consequências. Ou seja, o descontentamento que gerou o motim não foi solucionado, mas o motim dissolveu-se. Pergunta: teria sido inútil, já que nada modificou para melhor? Afinal, por definição, não adianta procurar onde fica a utopia. Mas nem mesmo suas miragens?

Essa é a grande questão que intriga as pessoas ao redor do planeta e que este livro enfrenta.

O naipe de autores foi selecionado na linha de frente do pensamento progressista: Judith Butler, Nicole Brenez, Marie-José Mondzain, Antonio Negri, Jacques Rancière. Sim, Judith Butler, essa mesma recentemente ameaçada de linchamento entre nós, para nossa vergonha.

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Ao fim e ao cabo, o livro sugere que é preciso deixar de encarar os levantes apenas como perdas, já que é característica sua não desembocar propriamente numa revolução: mas estudá-los (e estimá-los) por aquilo que expressam em sua perene vitalidade. Ou seja, o mais importante não é cada levante mas sim o conjunto irreprimível dos levantes, que não cessam de ressurgir por mais que os poderes os arrasem a ferro e fogo. O que importa é seu caráter espontâneo – “não aguento mais” – e seu fôlego vivificador, portador da renovação da humanidade.

O organizador do volume, o francês Georges Didi-Huberman, foi instigado pela recorrente e crescente ida às ruas na atualidade, decidindo-se a colecionar e analisar, nesta nossa Sociedade do Espetáculo, as imagens em que se manifestam. Donde estes estudos, cujas bases percorrem toda a gama que vai de Aby Warburg a Walter Benjamin. Encerra o volume um alentado ensaio da autoria do organizador. Em perto de uma centena de páginas, o texto, intitulado “Através dos desejos (fragmentos sobre o que nos subleva)”, passa em minuciosa revista a prodigalidade de gestos muitas vezes fundadores, que em sua repetição sob novas roupagens indicam a permanência da fraternidade nos mesmos impulsos. Esses gestos (por exemplo, os braços erguidos) são imortalizados na arte, seja na Grécia da Antiguidade, seja na pintura do Renascimento, seja ainda nos motins urbanos de hoje. Examinam-se as dissidências mais famosas, como a Desobediência Civil teorizada por Thoreau, a Resistência ao nazismo, a Não-Violência de Gandhi, a marcha pacífica de Martin Luther King, a sedição da juventude em 1968, a ascensão do Black Power, a solidariedade mundial ao Vietnã em guerra, as rebeliões das periferias metropolitanas, a derrubada do Apartheid, a torrente migratória desencadeada no rumo Sul-Norte, os refugiados da guerra na Síria. Enfim, as projeções visuais de um mundo em movimento, em que o corpo expressa o Não da recusa e o Sim do desejo.

Como se vê, o tema aparentemente unitário comporta vertigens de caleidoscópio, nele cabendo tanto o cinema de Chris Marker (Le fond de l´air est rouge) quanto a obra de erudição de Ernst Bloch (O Princípio Esperança) – ambos, cada qual em seu campo, verdadeiras enciclopédias da rebelião.

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O volume de 400 páginas editado pelo Sesc, encadernado e em luxuoso papel cuchê, traz um portfólio visual de levantes. A seleção obedece a um critério ao mesmo tempo histórico e formal. Vemos desde estatuária clássica e desenhos da autoria de Victor Hugo, até cenas da Revolução Francesa, da Revolução Russa, de maio de 1968, a Guernica de Picasso, filmes de Eisenstein, cartazes da Comuna, fotos de soldaderas mexicanas. E, a perder de vista, clássicos do protesto como os desenhos de Goya, Hogarth, Daumier, Gustave Courbet, Käthe Kollwitz. Há uma exposição correlata, que, tendo estreado no Jeu de Paume (Paris), com curadoria do organizador do volume, está em turnê internacional. Neste momento, encontra-se no Sesc Pinheiros, onde permanece até 28 de janeiro. Não percam. 

*Walnice Nogueira Galvão é autora de 'Euclidiana: Ensaios sobre Euclides da Cunha' (Companhia das Letras), entre outros livros 

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