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‘Fanatismo de direita’ causou 71% das mortes em atentados nos últimos nove anos nos EUA

Desde 2011, mais de 175 pessoas foram mortas em 16 ataques de vulto ligados ao ultranacionalismo branco

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Dois acontecimentos contrastantes e quase simultâneos marcaram para sempre o mês de agosto de 1969: a chacina comandada por Charles Manson (cinco adultos mortos, mais o filho de Roman Polanski que a atriz Sharon Tate trazia no ventre) e, na semana seguinte, o Festival de Woodstock (quatro dias de música & curtição, em clima de total liberdade: apenas duas mortes entre as 500 mil pessoas presentes, ambas acidentais). 

Ilustração de Jeffrey Henson Scales Foto: JEFFREY HENSON SCALES

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Como o mundo piorou bastante (não é nostalgia, é fato) e o tempo parece andar mais rápido, em apenas 13 horas, duas chacinas, uma no Texas (El Paso), outra em Ohio (Dayton), abriram este agosto sem o consolo de um jubiloso contraponto como Woodstock, só, portanto, com o pior do aziago mês. E tanto em El Paso como em Dayton, como antes em Charlottesville (Virginia) e Pittsburgh (Pensilvânia), o espectro de Manson reinou absoluto. Não havia negros hospedados na mansão dos Polanski, mas o objetivo confesso de Manson era iniciar uma guerra racial, a que rotulou de “helter skelter”, apelido chique de confusão. Se não a iniciou, Manson foi seu mais destacado e sanguinário arauto na era de Aquário. 

Essa guerra já tem praticamente dois séculos de longevidade. Remonta à folclorização de Jim Crow, caricatura e símbolo do negro maltrapilho e segregado do Sul dos EUA, ofensa racista e alcunha de leis discriminatórias; e à fundação da Ku Klux Klan, em 1866. Há muito alcançou outras raças e imigrantes de variadas etnias, primeiro os chineses (em 1882), agora os latinos, os muçulmanos pós-Bin Laden e os judeus de sempre. 

Domingo passado, o ex-neonazista Christian Picciolini abriu o jogo na CNN: “A guerra está apenas começando.” Não foi uma ameaça. Picciolini regenerou-se, mudou de lado; era um alerta de quem manja à beça do movimento dos nacionalistas e supremacistas brancos de seu país. 

Arregimentados, conectados e doutrinados nos recônditos da internet, em plataformas e sites como Gab, 4-chan, 8-chan, valhacoutos virtuais do extremismo de direita, que turbinam seus ressentimentos e preconceitos nativistas, os supremacistas realejam o mesmo discurso xenófobo e paranoico, a mesma teoria conspiratória do “Replacement”, segundo a qual eles estariam sendo “substituídos” por intrusos “impuros” (leia-se imigrantes), que ameaçam a hegemonia dos brancos, como se estes e não os índios pré-colombianos fossem os verdadeiros nativos da América.

“Desde os anos 1980 que esses grupos nacionalistas, aos quais já pertenci, têm ligações com o exterior; fazem parte de uma rede terrorista transnacional”, informou Picciolini, que os julga ocupados, no momento, em competir com similares históricos como Timothy McVeigh, que em 1995 bombardeou Oklahoma City, matando 168 pessoas e ferindo outras 680. McVeigh não era um supremacista, apenas um celerado em guerra pessoal com o governo Bill Clinton. Mas estabeleceu um recorde desafiador.

Em artigo publicado no New York Times de segunda-feira, 5, o ex-agente do FBI Ali H. Soufan, com 25 anos de experiência no combate ao jihadismo, traçou um paralelo perturbador entre o surgimento da Al-Qaeda nos anos 1990, a atual escalada do terrorismo doméstico americano e as práticas dos jihadistas do Estado Islâmico. Todos eles compartilham o mesmo instinto genocida e o mesmo credo apocalíptico num caos redentor, que os conduziria à “batalha final” contra os ímpios e impuros. Para os nativistas americanos, os muçulmanos são tão ímpios e impuros quanto os negros, judeus e mexicanos. 

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Até a semana passada, a mídia e Donald Trump, o mais desabrido e racista incentivador do “helter skelter” vigente, persistiam em distinguir os atentados cometidos por muçulmanos (“terroristas”) dos perpetrados pelos filhos da terra (“loucos”, “lobos solitários”). Agora já falam no componente ideológico, admitem a existência do “fanatismo de direita”, responsável por 71% das mortes em atentados ocorridas em território americano nos últimos nove anos. 

Desde 2011, mais de 175 pessoas foram mortas em 16 ataques de vulto ligados ao ultranacionalismo branco. A luz vermelha finalmente acendeu. Um dado inquietante, revelado na quarta-feira, 7, comprometeu ainda mais a Casa Branca: alertado, ano atrás, pelos serviços de segurança sobre a urgente necessidade de se investigar “ameaças do terror doméstico”, o governo não moveu uma palha. Também por isso os sobreviventes do massacre de El Paso se recusaram a receber Trump.

Intocados por mais de uma década, os supremacistas tiveram tempo de sobra para compartilhar estratégias e organizar-se além fronteiras. Embora só no ano passado 17 homicídios tenham sido cometidos por ativistas da “superioridade branca”, apenas uma pequena parcela do orçamento antiterror do Departamento de Segurança Nacional destina-se ao combate à violência dos nacionalistas fanáticos.

Apesar da retórica da Declaração de Independência, na maior parte de sua história, os EUA foram, na prática, uma nação supremacista branca. Seus fundadores se beneficiaram da mão de obra escrava. Em suas Notas Sobre o Estado de Virginia, Thomas Jefferson confessou crer na superioridade física e mental do homem branco e previu que os negros, se eventualmente abolida a escravidão, seriam enviados de volta à África. Os negros ficaram, enriqueceram a civilização americana e, ainda que não tivessem inventado o jazz, mereciam outro tratamento.

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