Ficção imagina um país em que a mentira é punida como um crime

'Golden State', de Ben H. Winters, é uma distopia sobre a pós-verdade

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Por Jon Michaud
Atualização:

Imagine um país tão traumatizado pelo engano, mentiras e abuso psicológico que opta por priorizar os fatos e dizer a verdade acima de tudo mais. Aqui está como seria a sua vida: câmeras de vídeo onipresentes capturam cada palavra e ação suas e as alimentam em um registro permanente de tudo que é “Objetivamente Assim”. Como qualquer outro cidadão, você manteria um relato detalhado de sua vida, reunindo páginas de diários, recibos e conversas anotadas, e selando-as em uma sacola inviolável para alimentos todas as noites. Se surgisse alguma dúvida sobre o que aconteceu, em um determinado dia, esse arquivo pode ser acessado para se determinar a verdade. Se fosse descoberto que você mentiu ou criou qualquer fato no registro, você poderia ser preso ou até mesmo exilado. E de acordo com o sistema de crenças nacional, toda a narrativa ficcional – seja na página, no palco ou na tela – é proibida. Nada de romances, filmes, peças ou internet. Isso seria um paraíso ou um inferno para você?

O escritor Ben H. Winters, autor de 'Golden State' Foto: NICOLA GOODE

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O novo romance de Ben H. Winters, Golden State (Estado Dourado, em tradução livre) se desenrola em um lugar como este, em uma Califórnia futura alternativa, onde “a preservação da integridade da realidade é o dever primordial dos bons cidadãos e do governo”. O narrador do romance, Laszlo Ratesic, é um membro do Serviço Especulativo do Estado, o órgão responsável pela aplicação da lei, encarregado de desencavar mentiras e mentirosos e separar “infortúnios acidentais” de “deturpações intencionais”. Como outros membros do serviço, Laszlo tem um sexto sentido para a falsidade. Ela produz uma reação física nele, como uma alergia. Laszlo é um homem amável, um veterano de 54 anos, há 19 no serviço, barbado, com excesso de peso e recém-divorciado – em suma, o típico cínico e entediado detetive de ficção. Ah, e ele tem sua história. Laszlo vive e trabalha à sombra de seu irmão Charlie, um lendário militar que morreu misteriosamente no cumprimento do dever.

No início do romance, Laszlo é convidado a ser o mentor de uma promissora novata, chamada Aysa Paige. Ela é sua antítese: magra, jovem, enérgica e idealista. Este estranho casal é enviado para investigar um caso aparentemente simples, um reparador de telhados que caiu e morreu durante o trabalho. Mas as anomalias logo começam a se acumular. A casa pertence a um juiz. O reparador estava lá, fora do horário normal de trabalho. A vigilância por vídeo sugere que ele poderia estar espionando. Será que o juiz estava escondendo alguma coisa? O carpinteiro foi empurrado? Laszlo e Aysa seguem esses enfoques cada vez mais fundo na infraestrutura legal e burocrática do Golden State, até que dão de cara com a poderosa elite que governa o país. Sua investigação força Laszlo a confrontar sua própria cumplicidade na manutenção desse sistema totalitário. Também revela a verdade por trás da morte de seu irmão.

Winters tem o dom de criar ficções com atraentes detetives que distorcem a realidade de maneiras provocativas, produzindo um híbrido do familiar com a estranheza. Sua trilogia O Último Policial (2012-2014) se passa em New Hampshire nos meses que antecederam a colisão da Terra com um asteroide. Underground Airlines, publicado em 2016, apresenta um Estados Unidos que jamais tiveram uma Guerra Civil e onde a escravidão ainda é legal em quatro estados. Na melhor das hipóteses, esses romances abordam cenários que poderiam ou não poderiam ter acontecido e as distopias psicodélicas criadas por Philip K. Dick, George Orwell e Michael Chabon. Ao lê-los, você sente sua percepção do mundo escorregando e se retorcendo.

Nos dois primeiros terços de Golden State, Winters faz isso novamente. O romance é ao mesmo tempo uma emocionante história de detetive e um inquietante trabalho de ficção especulativa. Winters imagina de forma notável as manifestações cotidianas de uma cultura obcecada pela verdade. Quando duas pessoas se encontram, elas trocam fatos como saudação: “Dez é metade de vinte.” “Mas é duas vezes cinco.” Como entretenimento, as pessoas assistem a transmissões televisivas de Idosos Andando com Cachorros ou Escorregando pelas Fendas da Calçada. Os únicos “romances” que alguém lê no Golden State são relatos factuais de eventos verdadeiros.

No entanto, o último terço de Golden State não cumpre a promessa de suas primeiras duzentas páginas. Winters se coloca em um canto imaginário. Quando Laszlo finalmente penetra na realidade corrupta por trás da fachada baseada nos fatos verdadeiros do Golden State, o que ele e o leitor descobrem é um cenário aflitivamente familiar de dezenas de outros livros e filmes de ficção científica. Em vez de uma redenção catártica, Laszlo alcança apenas uma dócil fuga.

Um dos momentos cruciais em Golden State descreve Laszlo lendo uma obra de ficção pela primeira vez: “O livro chega a um acordo comigo, torna-se realidade enquanto eu o leio... Quando olho para cima é como se a realidade de meu quarto fosse menos real do que a realidade dentro do livro”. Como eu gostaria que todo o romance de Winters tivesse produzido esse efeito em mim. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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Monopólio dos fatos

O monopólio estatal sobre a verdade é um tema recorrente na literatura. Não é incomum em obras de ficção que governos autoritários definam os limites do livre-pensar, o próprio significado das palavras ou o que deve ser tomado como verdadeiro ou não. Desde o livro que praticamente inaugurou o subgênero da distopia no início do século 20, Nós (1924), de Ievguêni Zamiátin – com edição no Brasil pela Aleph e pela 34 –, passando por seus principais tributários – Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley; 1984 (1949), de George Orwell; Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury; O Homem do Castelo Alto (1962), de Philip K. Dick; e A Escavação (1987), de Andrei Platonov –, todas as obras exploram, entre outras ideias, uma questão fundamental: quem detém o privilégio de definir o que é a verdade?

A disputa narrativa pelo controle da realidade foi originalmente inspirada pela maneira com que os regimes totalitários do século 20 procederam em todo o mundo: filtrando o acesso à informação, descreditando fontes confiáveis, reescrevendo a história de maneira revisionista, censurando a imprensa e vetando as manifestações artísticas. Os autores citados batem com vigor nessas teclas, cada um à sua maneira. 

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Nos últimos anos, porém, as formas de repressão se tornaram cada vez mais sutis – talvez Huxley tenha sido o mais bem-sucedido entre seus pares ao prever que o cidadão comum se entregaria voluntariamente ao deleite do soma. Para acompanhar esse panorama, autores de ficção especulativa engajados politicamente como Colson Whitehead, China Miéville e Ben H. Winters buscaram formas mais sofisticadas de representar essa opressão contemporânea capitaneada por um mundo líquido, tecnológico, sem privacidade e imerso na tal pós-verdade. 

Assim como a maioria dos clássicos distópicos, Golden State é narrado do ponto de vista de um integrante da máquina estatal – quando Lazlo Ratesic lê uma obra de ficção pela primeira vez, parece o bombeiro Guy Montag, de Fahrenheit 451, desfrutando de um livro. Com elementos insólitos, Winters mostra que, na guerra narrativa em que o Ocidente se meteu, a mera busca pela “verdade” objetiva não parece suficiente para livrar a sociedade de seus males. /ANDRÉ CÁCERES

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