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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|FILOSOFIA OSTENTAÇÃO

Moralistas, hedonistas, utilitaristas e niilistas se reúnem para discutir o luxo. E descobrem que quem sabia mesmo das coisas era Sócrates

Atualização:

Enquanto os jihadistas do Estado Islâmico planejavam sua razia contra o modo ocidental de gastar dinheiro, curtir a vida noturna, o rock e o futebol, do outro lado do Atlântico a revista cultural Boston Phoenix patrocinava um fórum de debates sobre a sociedade de consumo e seus excessos; ou seja, um confronto civilizado de ideias e críticas à maneira como os ímpios do mundo inteiro se deixam seduzir pelo luxo e viciar pela oneomania (o impulso exacerbado de comprar coisas sem delas necessitar).

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Todas as vertentes estavam representadas entre os dez debatedores. Dos moralistas (“a obsessão por possuir objetos supérfluos corrompe a alma”) aos utilitaristas (“o dinheiro gasto na compra de supérfluos seria melhor aplicado no consumo de coisas relevantes ou em comunidades carentes”), aos hedonistas (“se comprou por puro deleite, não para impressionar amigos, parentes e vizinhos, tudo bem”) e aos niilistas (como Peter Singer, que considera doações a museus um ato de “caridade perdulária e autoindulgente”).

Por que alguém dá milhares de dólares por uma bolsa Prada, um terno Armani ou um Rolex? Com essa pergunta o cientista cognitivo da Universidade de Yale Paul Bloom abriu o fórum, o sexto da revista este ano. Autor de O Que Nos Faz Bons ou Maus, traduzido em 2014 pela Best Seller, Bloom também queria saber o que leva as pessoas à oneomania. “Se querem saber as horas, comprem um Timex barato, se o dinheiro está sobrando, remetam pela internet um donativo para alguma instituição de caridade”, sugeriu, mesmo ciente de que há muito mais coisas entre o céu e os nossos desejos do que supõe a vã psicologia. Era só uma provocação, um tira-gosto argumentativo.

Como esperado, a veneranda Teoria do Consumo Conspícuo, de Thorstein Veblen, e sua ênfase no fator ostentação, foi a primeira a entrar na roda. Já fez 116 anos, ainda joga um bolão para a idade, mas tem lá suas limitações. Veblen não levou em consideração, por exemplo, as razões estéticas e sensoriais que também guiam nossas preferências e orientam os estudos sobre o consumo de uma das estrelas do fórum, Virginia Postrel, autora de The Substance of Style e, mais recentemente, de The Power of Glamour.

A análise de Postrel privilegia a aparência e a percepção física dos objetos e como elas denunciam nossas identidades como indivíduos e como grupos, identificando quem somos e nossa filiação social. Nossa reação a certas mercadorias é “imediata, perceptiva e emocional”; nós as desejamos pelo prazer que olhar e interagir com produtos de alta qualidade nos proporcionam. Um de seus exemplos do poder do glamour sobre as pessoas são as afegãs de Cabul que, tão logo se viram temporariamente livres do jugo dos talebans, passaram a usar burcas coloridas e pintar as unhas.

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Numa trilha paralela, o psicólogo Geoffrey Miller explicou o desejo de se comprar um terno Armani não só por ele ser bonito e seu tecido gostoso de passar a mão, mas porque vesti-lo denota distinção, inteligência, ambição e poder, traços de que os homens se utilizam para ampliar seu repertório de sedução. O terno Armani é a cauda do pavão humano. Miller, que há seis anos publicou um elogiado ensaio sobre as relações do consumo com o sexo e o evolucionismo (Spent: Sex, Evolution, and Consumer), fundiu Veblen com a “seleção sexual” teorizada por Darwin.

O psicólogo também viajou em outro exemplo destacado por Bloom: o Rolex President. Custa em torno de US$ 30 mil, mas só um expert notará a diferença se substituído por uma imitação perfeita, à venda na internet por US$ 1,2 mil, segundo Miller. “Se o objetivo do usuário for apenas, ou acima de tudo, impressionar os outros, um falso Rolex cumpre a função”, acrescentou Miller. Mas não se almejarmos sinalizar para nós mesmos que somos (ou nos sentimos) poderosos porque trazemos no pulso um autêntico produto luxuoso ou se desconfiarmos de que os verdadeiros Rolex são mais resistentes e duráveis que os fakes.

Sinalizar foi um verbo usado com frequência no fórum. Contrabandeado do economês, sentou praça no jargão dos teóricos do consumismo como sinônimo de mostrar, exibir, esfregar nos olhos dos outros o que você tem e eles não – e despertar sua admiração. Quando a gente vê um produto que achamos bacana, as áreas do cérebro associadas ao prazer e à aprovação social são ativadas de estalo.

O que dizer das áreas do cérebro associadas à inveja e ao rancor? Devem até piscar, quando não despertar instintos homicidas e dar à luz, ou melhor, às trevas um novo trombadinha ou um novo mujahidin. Em seu Laboratório da Natureza Humana, na Universidade de Yale, Nicholas A. Christakis descobriu que tendemos a tratar como inferiores as pessoas que não possuem o nosso “padrão de luxo”. Pior do que consumir conspicuamente é sinalizar alguma forma de soberba. Christakis considera a visibilidade da riqueza um fator crucial: “Ver ou sentir a desigualdade corrói mais o tecido social que a desigualdade em si”. Daí ser simpático à ideia de se sobretaxar as mercadorias de luxo, para equilibrar um pouco a FIB (Felicidade Interna Bruta).

Não é o único a defendê-la. Nem o único a desconfiar de sua eficácia para sustar o consumo conspícuo dos bilionários. Condenada por gregos, romanos, judeus e cristãos, a gastança com supérfluos sempre foi vista com suspeição pela cultura ocidental.

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No volume 2 de A República de Platão, Sócrates discute com Glauco sobre a importância de se consumir apenas as coisas necessárias. Seria assim na “cidade verdadeira”, por ele imaginada, que seu discípulo, decepcionado, qualificou de “cidade de porcos”. Glauco, se me permitem a simplificação, foi um “precursor” de David Hume, filósofo britânico do século 18, baluarte do luxo como fonte de prazeres conviviais e aprimoramento da humanidade, já que, segundo Hume, perseguir o luxo estimula os menos abonados a subir na vida e melhorar seu poder de compra.

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Embora reconheça a relevância das propriedades sensoriais dos objetos apontada por Postrel, Paul Bloom, inspirador e âncora do fórum, dá mais valor ao currículo histórico, ao passado, de cada objeto cobiçado. Muitos consumidores sentem-se mais atraídos por algo que já tenha sido usado ou tocado por uma pessoa importante ou fisicamente atraente do que por algo novinho em folha. Não cobiçam uma mercadoria, mas um fetiche. Quanto mais intensamente usada uma peça, maior sua cotação no mercado. Calcula-se que o uniforme suado de um ídolo esportivo perca um terço do valor se lavado ou higienizado antes de ir a leilão.

Num leilão realizado três anos depois da morte de John Kennedy, seus tacos de golfe foram arrematados por US$ 772.500, e uma trena da casa do finado presidente por US$ 48.875. Nem os tacos nem a trena eram sequer folheados a ouro. O eBay, site de leilões da internet, já arrecadou um bom dinheiro com o resto de um café da manhã de Barack Obama e uma goma de mascar (mascada) de Britney Spears.

Esse fetichismo, que remonta aos primeiros anos da era cristã, quando os ossos de supostos santos e supostos fragmentos da cruz em que Jesus fora pregado adquiriram propriedades totêmicas, enriqueceu os marceneiros com acesso ao arvoredo que cercava a casa de Shakespeare e ao que dava sombra ao túmulo de Napoleão, cujo pênis, aliás, virou suvenir, por obra do padre que ao corso ministrou os últimos sacramentos. No século passado, as relíquias mais cobiçadas passaram a vir dos estúdios de Hollywood, e até hoje continuam sendo leiloadas na Sotheby’s.

Dos exemplos contemporâneos de fetichismo, o que mais fascinou Bloom foi a coleção de papéis do romancista Jonathan Safran Froer. Consumo mais inconspícuo, impossível. O autor de Extremamente Alto & Incrivelmente Perto coleciona laudas em branco de seus colegas de ofício: uma de cada escritor, justamente a próxima que cada um deles usaria para escrever um conto, um romance, um verso ou um ensaio. Tem papéis de Susan Sontag, John Updike, Paul Auster, David Foster Wallace, etc. Tudo começou quando um amigo o presenteou com uma folha em branco surripiada da escrivaninha de Isaac Bashevis Singer.

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Se Foer logrou montar uma coleção de preciosos mementos a custo zero, Trayon Christian não teve a mesma sorte. Estudante de engenharia, negro e pobre, Christian comprou um cinto da grife Ferragamo, que lhe custou US$ 350 numa das lojas de departamentos mais chiques de Nova York. Ao fazer o pagamento, com seu cartão de débito, foi preso, algemado e levado para a chefatura mais próxima. Sua conta tinha fundos, mas ele não tinha pinta de quem podia comprar um cinto tão caro, aos olhos da gerência da loja e da polícia.

Essa variante racista da clássica indagação sociofilosófica (“por que as pessoas compram algo acima de suas posses e além das suas necessidades?”), relatada por Virginia Postrel, não termina aí. Christian queria apenas ter um cinto igual ao de seu ídolo, o rapper Juelz Santana. Na sua fantasia, o cinto era a ponte simbólica para o mundo glamourizado ao qual sonhava ascender. Depois de solto pelos tiras, descobriu que o cinto usado por Santana não era exatamente aquele pelo qual desembolsara US$350, mas outro, bem mais barato, e devolveu o seu à loja. Economizou uma boa grana e aprendeu mais de uma lição – uma delas socrática.