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Finalmente, um roteiro de James Baldwin

Injustiçado, ativista pela igualdade racial é o tema do documentário 'Eu não Sou seu Negro', de Raoul Peck, indicado ao Oscar

Por Salamishah Tillet
Atualização:
O roteiro não acabado de 'Remember This House', escrito por James Baldwin, está no cerne do documentário 'Eu Não Sou Seu Negro', indicado ao Oscar Foto: Magnolia Pictures/Divulgação

“Nunca me vi como porta-voz”, disse James Baldwin uma vez numa entrevista. “Sou uma testemunha. Na igreja em que fui criado, você tinha de testemunhar a verdade. Hoje, pode-se perguntar o que seja a verdade, mas todos sabem o que é a mentira.”

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Essa noção de testemunha – alguém que pode distinguir entre falsidade e fato, mito e verdade, cujo testemunho sobre o passado pode mudar o destino de outra pessoa – é um dos temas mais profundos da obra de James Baldwin. Mas ser ao mesmo tempo narrador e testemunha da complexa e tumultuada história dos Estados Unidos foi a sina e a maldição de Baldwin. Com frequência, isso significou tentar salvar uma nação da ruína racial num tempo em que seus amigos e ativistas de direitos humanos Medgar Evers, Malcolm X e o reverendo dr. Martin Luther King Jr. vinham sendo mortos.

O confronto de Baldwin com esse dilema está no cerne do novo documentário do cineasta Raoul Peck indicado para o Oscar, Eu não Sou seu Negro (I Am Not Your Negro), em parte baseado no manuscrito inacabado de Baldwin Remember This House, dado a Peck pela irmã do escritor, Gloria Karefa-Smart. Numa carta de 1979 a seu agente, Baldwin disse, referindo-se aos filhos de Evers, X e King, que o livro implicaria “expor-me como testemunha da vida e morte de seus pais famosos”. 

Já houve muitos documentários apresentando Baldwin como tema da história ou seu narrador, incluindo o filme I Heard It Through the Grapevine, de 1982, mas Eu não Sou seu Negro é o primeiro inteiramente moldado nas palavras do escritor. Daria para dizer que ele foi colaborador de Peck, e, de fato, Baldwin leva o crédito de único roteirista do filme, o que combina com a vida de um autor fascinado a vida toda por cinema.

Desse ponto de vista, o filme de Peck é “o acabamento, a coroação de todos esses documentários”, disse Richard Blint, pesquisador do Pratt Institute que vem trabalhando num projeto sobre Baldwin e o cinema americano.

O filme cobre os cinco anos nos quais os líderes citados foram assassinados, mas também reconta a história do longo século 20, e agora do 21, sob a lente das relações raciais americanas. Peck consegue isso usando filmagens raras de Baldwin dando entrevistas e discursando nos anos 1960 e, ainda mais impactante, ao revelar quão intimamente a tecnologia do cinema americano sempre esteve ligada à prática e às políticas de desigualdade racial dos Estados Unidos.

Do mesmo modo que Baldwin se locomove entre histórias pessoais e análise política em seus ensaios, Peck junta imagens de protestos pelos direitos civis dos anos 1960 a imagens dos recentes protestos de Ferguson e Baltimore; usa filmagens dos tumultos de Watts, em Los Angeles, de 1965, em meio a clipes hiperpatrióticos do filme promocional de 1960 The Land We Love; e alterna cenas de westerns exaltando Gary Cooper com extratos do debate de Baldwin em Oxford, no qual ele afirma, chocado: “Embora vocês torçam por Gary Cooper, os índios são vocês”. 

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“Baldwin esteve comigo durante toda minha vida, minha vida consciente”, disse Peck numa entrevista. “É alguém sobre quem aprendi muito cedo, alguém que me formou, me ensinou a pensar, a desconstruir histórias, imagens e narrativas, e a quem usei a vida toda. Nunca foi para mim apenas um escritor – foi uma testemunha.”

O cineasta relembrou como a literatura de Baldwin afetou diretamente seu modo de ver as coisas quando sua família se mudou do Haiti para a República Democrática do Congo. Ele tinha então 8 anos. “Meu mundo imaginário era povoado por filmes americanos, a narrativa dominante para muita gente de todas as partes”, explicou. “Quando fui para o Congo, minha imagem da África era de selvagens correndo nas florestas e uns poucos brancos civilizados tentando ensiná-los a se tornarem seres humanos.”

Ele prosseguiu: “Mas no segundo em que pus os pés no aeroporto do Congo percebi que eram histórias totalmente falsas, não batiam com o que eu estava vendo e sentindo. Essa capacidade e privilégio de não apenas viver o momento, mas se distanciar e analisar o que está acontecendo, encontrei na obra de Baldwin”.

James Baldwin é tema e roteirista do documentário'I Am Not Your Negro', de Raoul Peck Foto: Magnolia Pictures/Divulgação

Peck investiu fortemente em The Devil Finds Work, um longo ensaio de 1976 no qual Baldwin explora seu íntimo e vexatório relacionamento como espectador, crítico e, às vezes, criador do cinema americano. “Sou fascinado pelo movimento na tela e fora dela”, declarou Baldwin; e compartilhou o fascínio que sentiu aos 7 anos pelas “costas retas e solitárias” de Joan Crawford em Quando o Mundo Dança. Entretanto, por mais que o jovem Baldwin tenha sido seduzido pelo poder de Hollywood, seu eu mais velho procurou, através da escrita, expor as fantasias raciais e os estereótipos racistas que a indústria cinematográfica construíra e eram interminavelmente reproduzidos através do mundo. 

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Lembrando filmes que tinham interpretações estereotipadas de Mantan Moreland, Willie Best, Lincoln Perry (também conhecido como Stepin Fetchit) e outros atores afro-americanos, Baldwin escreveu: “Parecia que eles mentiam sobre o mundo que eu conhecia, rebaixando-o; eu, até onde soubesse, com certeza não conhecia ninguém como eles”.

Baldwin os comparou a atores como Ethel Waters, Paul Robson e especialmente Sidney Poitier, cujos desempenhos frequentemente “iam além dos limites do roteiro” e proporcionavam representações mais realistas da vida dos negros, “inseridas como contrabando em histórias patéticas”.

Dar o crédito de roteirista a Baldwin em Eu não Sou seu Negro é algo de que ele certamente teria gostado. Apesar de sua visão crítica de Hollywood, Baldwin mudou-se para Los Angeles em 1968 para escrever um roteiro sobre Malcolm X. A experiência foi frustrante. As relações do escritor com a Columbia Pictures ficaram tão tensas depois que o estúdio contratou Arnold Perl para reescrever grandes partes do roteiro que Baldwin abandonou o projeto.

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Mais tarde, ele refletiu: “A experiência permaneceu muito dolorosa em minha mente e acabou me dando uma visão da área sombria da vida americana”. Baldwin publicaria seu roteiro como One Day When I Was Lost em 1972, mas a versão de Perl foi vendida para a Warner Bros. e eventualmente se tornou a base para o filme biográfico (biopic) de Spike Lee de 1992 Malcolm X. Mantendo-se no espírito de Baldwin de rejeição desse roteiro, os herdeiros de Baldwin recusaram-se a pôr seu nome nos créditos do filme. 

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“O roteiro de Baldwin mudou o gênero biopic”, disse Brian Norman, professor de inglês na Universidade Loyola de Maryland, que escreveu sobre o script. “Ele deu uma visão estranhamente desconectada, não cronológica, de Malcolm X reinventando-se ininterruptamente, sempre presente e sempre relevante.”

E esse é um dos grandes presentes que o filme de Peck dá a Baldwin e às plateias contemporâneas: Eu não Sou seu Negro visa a aproximar a estética de Baldwin e sua sensibilidade crítica do formato cinematográfico. O resultado é ao mesmo tempo uma profunda reflexão sobre a visão de Baldwin e uma meta-história dos filmes americanos, exigindo que, como testemunhas, optemos por acabar com o racismo americano ou sermos engolidos por ele. /TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ