Financiar a cultura é gasto ou investimento?

Especialistas falam sobre como diversos países encaram o fomento à arte e seus impactos econômicos

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Por André Cáceres
Atualização:

O ano de 2020 começa com um cenário desafiador para a produção cultural brasileira. A extinção do Ministério da Cultura (rebaixado a uma secretaria dentro do Ministério da Cidadania e, mais tarde, do Turismo) foi o pontapé inicial de uma sequência de reveses sofridos pelo setor artístico no Brasil, como cortes nas verbas culturais e profundas mudanças na Lei Rouanet

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Nem mesmo os mais ferrenhos detratores das políticas de incentivo negam que a cultura cumpra um papel social importante e seja fundamental para a formação da identidade de um povo. A questão, para essas pessoas, é que esse dinheiro não deveria teoricamente vir dos já exíguos cofres públicos, e sim de agentes privados, o que justificaria essa austeridade de 2019. Enquanto o Brasil, sob essa visão, reduz cada vez mais o fomento cultural, há exemplos de sobra ao redor do mundo e ao longo da história para desmentir que o financiamento público de arte seja um desperdício de recursos.

Um dos que ressaltam a relevância econômica da cultura é Matthias Makowski, diretor executivo do Goethe-Institut São Paulo. “Nós sabemos bem atualmente o quão importante é o fator cultura para o ambiente empresarial. Como centro econômico, a cidade de Munique é atrativa também porque a infraestrutura cultural para empresas, seja de qual for a sua origem, é um fator econômico positivo. Aliás, São Paulo me parece ser um caso semelhante.”

Em entrevista ao Estado, Makowski, que comanda na América do Sul o órgão difusor da cultura alemã, fala do impacto que a arte tem para outras áreas da sociedade em termos práticos: “Está comprovado cientificamente que o fator ‘cultural’ de uma localidade não só gera empregos, como também motiva empresas a investirem e é atualmente um critério fundamental de decisão para a instalação de uma empresa.”

Em 2018, o parlamento alemão aprovou um aumento significativo no orçamento para a cultura, trilhando um caminho contrário ao do Brasil. Makowski, que trabalha há mais de 30 anos com essa área, relata: “Eu percebo cada vez mais que os gastos com cultura também são gastos para nosso futuro. Onde mais devem ser elaboradas as respostas necessárias para as questões do futuro do que nas incubadoras culturais de uma sociedade, nos teatros, museus, galerias, bibliotecas e universidades?”

Essa visão é compartilhada pelos japoneses, de acordo com Natasha Barzaghi Geenen, diretora cultural da Japan House. “Quando você se aproxima por meio da cultura, a empatia é muito mais forte. Quando o Ministério das Relações Exteriores do Japão abre uma instituição como essa, ele tenta se aproximar de outros países por meio da cultura”, afirma ela. “A Japan House é vista como um investimento, não como um gasto para o governo japonês. É uma plataforma muito única de troca de cultura, mas também de negócios, troca de tecnologia. Ela tenta aproximar empresas japonesas com outros países.”

Michele Gialdroni, diretor do Istituto Italiano di Cultura, afirma que a Itália também demonstra preocupação com essa área. “O setor cultural, em sentido amplo, contando também o design, a moda, o turismo, a gastronomia, o mercado editorial, compõe uma cota significativa do PIB italiano. Há muitas áreas culturais que podem ter um impacto positivo na economia do país.” Em entrevista por telefone, ele diz que “a Itália vê a dimensão cultural como parte integrante da relação exterior, como um soft power”. 

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Esse conceito de “soft power”, ou seja, a capacidade que um país tem de influenciar o cenário político internacional por meios não coercitivos, é um dos principais motivos pelos quais tantas nações investem na difusão de sua própria cultura no exterior. “Quando o intercâmbio cultural é fortalecido, mesmo os países mais distantes podem se familiarizar e ter uma relação amigável como se fossem vizinhos”, diz Young Sang Kwon, diretor do Centro Cultural Coreano. “As formas de enxergar a cultura podem variar dependendo da condição econômica, porém não podemos ignorar o fato de que a cultura em si já se tornou parte importante de nossas vidas. Embora os investimentos em cultura possam diminuir um pouco em tempos econômicos difíceis, acredito que eles sempre serão algo valioso e atraente.”

Kwon representa no Brasil um país que soube como poucos usar o fator cultural ao seu favor. Em 1997, após uma crise financeira que devastou a Ásia, a Coreia do Sul teve a ideia de investir na música como um produto de exportação: uma lei sul-coreana de incentivo destinou a massiva quantia de 1% do orçamento federal para a cultura. Inspirado na boy band Seo Taiji & Boys, o empresário Lee Soo Man passou a emplacar banda atrás de banda nas paradas de sucesso, ajudando a criar o que viria a se chamar K-Pop.

“O processo de superação da crise financeira da Coreia foi muito dinâmico”, explica Kwon. “Naquela época, a indústria cultural, que possuía alto valor agregado e exigia alta criatividade, atraiu a atenção do governo coreano. E graças ao interesse e apoio do governo, hoje, conseguimos garantir a competitividade global no campo de conteúdos culturais, como o K-Pop, que contribui para aumentar o valor da marca nacional.”

O resultado não poderia ser melhor: apenas uma banda, o BTS, é responsável por US$ 3,5 bilhões no PIB do país, de acordo com um estudo do Hyundai Research Institute, que projetou que em dez anos o grupo será mais vantajoso para a economia coreana do que ter sediado a Olimpíada de Inverno de Pyeongchang, em 2018. Dos 10 milhões de turistas que visitam a Coreia do Sul anualmente, 7,6% declaram ter ido ao país especificamente por causa do BTS. 

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Há quem compare a popularidade do BTS hoje à dos Beatles, nos anos 1960. De fato, a importância econômica de ambos os grupos é semelhante: um estudo conduzido pela Universidade de Liverpool em 2015 estimou que os Beatles, por meio de turismo, produtos licenciados e impactos indiretos, injetam na economia da cidade de Liverpool 81,9 milhões de libras anualmente, além de criar mais de 2 mil postos de trabalho.

Mas não só de música pop sobrevive a economia criativa. Criado em 1920 pelo diretor de teatro Max Reinhardt, o Festival de Salzburgo, na Áustria, tem apoio estatal e traz anualmente uma grande quantidade de turistas para a cidade de cerca de 150 mil habitantes. O evento de música clássica, ópera e teatro conta com apresentações gratuitas e pagas, e contribui com 213 milhões de euros todos os anos para a cidade, dobrando a população do município durante um mês, sempre no verão do hemisfério norte. Uma pesquisa da Câmara Econômica de Salzburgo constatou que o festival cria 2,8 mil empregos permanentes e arrecada 77 milhões de euros apenas em impostos.

O Brasil nem sempre tratou a arte como um luxo supérfluo, como conta Pedro Mastrobuono, presidente do Instituto Volpi. “Brasília foi pensada para mostrar ao mundo que a arte e a cultura eram importantes no processo de tomada de decisão dos rumos do País. Juscelino Kubitschek chamou a nata dos artistas brasileiros: Athos Bulcão, Oscar Niemeyer, Alfredo Volpi, Burle Marx, Bruno Giorgio… Giorgio, aliás, dizia que JK entendia que a capital poderia se tornar uma ‘nova Atenas’”. 

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Até mesmo o regime militar via a cultura como parte integrante da formação nacional. Isso explica que, apenas no governo Geisel, o MEC tenha reformulado a Embrafilme e o Serviço Nacional de Teatro, criado a Funarte, o Conselho Nacional de Cinema, o Conselho Nacional de Direito Autoral, além de instituído a Política Nacional de Cultura. Esse processo de gradativa ampliação para o fomento à arte antecedeu em duas décadas a criação da Lei Rouanet, que “vem sendo demonizada de uma maneira avassaladora”, diz Mastrobuono. “A captação, mesmo para projetos dignos e premiados, ficou muito prejudicada”, lamenta ele.

Ainda que a condição econômica do Brasil possa ser usada como argumento em favor de um freio nos gastos com cultura, não foi só a Coreia do Sul que investiu em arte durante tempos de vacas magras. Em meio à maior crise financeira da história, após a quebra da bolsa em 1929, a década de 1930 viu florescer os primeiros programas de financiamento público de cultura nos Estados Unidos. Na tentativa de reacender a economia americana, que ainda não havia recuperado os padrões pré-crise, o governo criou diversos pacotes de estímulo à produção artística. O Federal Art Project, que chegou a empregar mais de 5 mil artistas plásticos somente em 1936, recebeu ao longo de oito anos um investimento total de US$ 35 milhões. 

Pode parecer muito, ainda mais para um país em crise, mas um dos artistas subsidiados foi Jackson Pollock, cuja obra Nº5 (produzida em 1948, mas cuja criação seria certamente impossível sem o apoio inicial do governo) foi vendida em 2006 por US$ 140 milhões. Sem contar que, ao todo, o projeto viabilizou a produção de mais de 2.500 murais, 100 mil telas, 17 mil esculturas e 300 mil gravuras entre 1936 e 1943, deslocando o eixo do lucrativo mercado de arte da Europa para a América.

Hoje, nos EUA, de acordo com o Departamento de Análise Econômica, as artes acrescentam US$ 763,6 bilhões (R$ 3,1 trilhões) à economia americana, o quádruplo da agricultura e o dobro dos transportes. O setor artístico emprega 4,9 milhões de trabalhadores no país e tem um superávit de US$ 20 bilhões na balança comercial americana. 

O cinema (que, sozinho, contribui com US$ 100 milhões desse montante) é tão estratégico que, entre 2004 e 2014, o sul da Califórnia deixou de arrecadar US$ 3 bilhões apenas com a diluição da indústria do entretenimento para lugares fora de Hollywood – hoje, mais de 40 estados americanos, além do Canadá e da África do Sul, oferecem isenção de impostos para estúdios que queiram rodar filmes. A Nova Zelândia, que foi palco das filmagens da trilogia O Senhor dos Anéis (2001-2003) experimentou um crescimento de 40% em sua receita proveniente de turismo logo após o sucesso dos filmes de Peter Jackson.

No Brasil, embora o cinema venha sendo alvo de ataques até do governo, há ainda quem consiga financiar excelentes filmes por meio de coproduções com outros países, como o produtor carioca Rodrigo Teixeira, que, apenas em 2019, em parcerias com EUA, França e Alemanha, lançou A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, O Farol, de Robbert Eggers, Ad Astra, de James Gray, The Wasp Network, de Olivier Assayas e Port Authority, de Danielle Lessovitz.

Também a literatura já se provou relevante economicamente. Recentemente a Flip foi rejeitada pelo edital de feiras literárias do governo federal, mas em 2018 um estudo da FGV descobriu que, a cada R$ 1 investido no evento, R$ 13 retornam à economia – e, dos recursos públicos, o Estado lucrou 50% além do que aplicou na Flip naquele ano. 

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Por mais que não pareça nada intuitivo do ponto de vista puramente econômico, países dos mais distintos financiamcultura com recursos públicos, seja para aumentar sua influência, movimentar a economia ou atrair investidores e turistas. Resta saber se o Brasil encarará a arte como gasto ou investimento em 2020.

Pintura de 1948 de Jackson Pollock, artista que foi financiado pelo New Deal americano, tornou-se a mais cara do mundo entre 2006 e 2011 Foto: Coleção de David Martinez
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