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Frau Merkel e sua mente empírica

Formada em física, a chanceler está apegada a um dogma: sem moeda única, haverá a volta às rivalidades destruidoras

Por JEFFREY GEDMIN
Atualização:

Não é uma bilionária nem uma celebridade da mídia social, tampouco uma autora de best sellers. Numa época de espalhafato, é particularmente recatada. Segundo ela própria admite, quando jovem era um tanto desajeitada. Mas Angela Merkel, chanceler da Alemanha nos últimos 8 anos, tornou-se com toda a discrição a mulher mais poderosa do mundo. Passei um dia com Frau Merkel na primavera de 2005, num piquenique debaixo de uma árvore num tranquilo ambiente rural, a uma hora e meia de carro de Berlim. Na época, ela era presidente da União Democrática Cristã (CDU) e se candidatara às eleições contra o social-democrata Gerhard Schroeder. Ela me telefonara semanas antes - naquele tempo, eu dirigia o Aspen Institute Berlin - convidando-me para participar de um grupo de especialistas em política externa que se reuniria para discutir a situação da Alemanha, da Europa e do mundo. Em primeira mão, conheci não apenas Angela Merkel, enquanto personalidade política, mas também a Merkel, formada em física - uma chance para ver como a sua mente funciona. Esta formação explica bastante sua abordagem para a solução dos problemas. E quem sabe, fundamentalmente, espero, a solução da crise do euro. A primeira coisa que se pode observar é que Merkel não costuma pontificar sobre as questões. Ela procura coligir os dados cuidadosa e pacientemente. Adora avaliá-los devidamente e ter um quadro completo antes de chegar a alguma conclusão. É algo raro em política, em que todos nós temos nossas tendências e ideias preconcebidas. Uma coisa é certa: nem todos os políticos são autores de teses de doutorado com títulos como Exame do mecanismo das reações de decomposição com a simples ruptura das ligações e o cálculo de suas constantes de taxa segundo métodos químico-quânticos e estatísticos. O marido de Merkel, aliás, é um químico quântico e professor que, como a chanceler, viveu a primeira parte de sua vida na Alemanha Oriental. Naquele dia, ficou claro no nosso pequeno seminário à beira de um lago que Merkel estava lá para coligir informações. Ela é uma mente empírica e tem uma enorme capacidade para decidir. Tive a impressão de que ela queria colocar cada parte da análise e cada recomendação política sob o microscópio. Testemunhei esta mesma metodologia em outras ocasiões. Certa vez fui mediador numa conversa entre Merkel e Binyamin Netanyahu em Berlim, numa época em que Bibi se encontrava entre dois mandatos como primeiro-ministro de Israel. O que ela pensava do processo de paz israelense-palestino, de Gaza, do Egito ou do Irã? Não foi possível saber numa conversa de hora e meia de duração. Ela se limitou a fazer uma série de perguntas ao seu convidado, e a montar o seu banco de dados. A abordagem científica de Merkel constitui uma enorme vantagem. E agora vem o problema. A zona do euro está se esfacelando. A economia finalmente se aproxima da política. Está se tornando rapidamente uma questão de simples matemática. Basta olhar o Índice de Default do Centro de Política Europeia (CEP) de Freiburg. O hiato entre os países disciplinados do ponto de vista fiscal e solventes, de um lado, e os que afundam em dívidas, do outro, está se ampliando cada vez mais. Se não ocorrer uma mudança drástica, não será mais possível manter a Europa na mesma moeda comum. O presidente da CEP, Lüder Gerken, resume o problema da seguinte maneira: “Demos aos gregos o dinheiro de que precisavam e recomendamos que adotassem amplas reformas. Eles não as adotaram, e nós continuamos a dar-lhes dinheiro.” Enquanto isso, os gregos não se cansam da ajuda dos alemães; ao contrário, revoltam-se terrivelmente quando os alemães lhes dizem o que devem fazer. Na última viagem de Merkel a Atenas, milhares de manifestantes carregavam faixas comparando a líder alemã a Hitler e denunciando o novo Quarto Reich. Por razões próprias, os franceses também estão se tornando irritadiços. Com a economia em queda livre, a França se cansou do presidente François Hollande, cujo índice de popularidade continua despencando - apenas 30% depois de apenas um ano no cargo. É um recorde. Os franceses também estão cansados de ouvir os alemães pontificando sobre as virtudes da austeridade. As tensões franco-alemãs se agravarão e o sentimento populista na França, e em outras partes da Europa, continuará crescendo. Há dois fatos inevitáveis: 1) não existirá a menor possibilidade de a zona do euro se manter unida se isto significar intermináveis operações de ajuda da Alemanha a países que não estão dispostos a pôr em ordem as próprias finanças; e 2) a Europa não poderá esperar um futuro estável se a economia francesa continuar cronicamente enferma, e a confiança entre Paris e Berlim se deteriorar. A mais recente notícia desanimadora proveniente da zona do euro foi a debacle dos bancos em Chipre. Mais uma crise, mais um caso “único”, mais um precedente. Logo será a vez da Espanha: outro caso único. O que é preciso? Seguramente não os sonhos fantasiosos dos parlamentares britânicos conservadores. Alguma forma de integração europeia terá de permanecer, pois este é o desejo da maioria dos europeus. Entretanto, o imprescindível é flexibilidade, pragmatismo e um plano ordenado, lúcido, tendo em vista uma Europa com níveis de desenvolvimento distintos. Isso exige uma nova visão da Europa que inclua a possibilidade de a Grécia e quem sabe alguma outra nação saírem do euro, processo que inevitavelmente acarretará graves custos financeiros e políticos. Entretanto, evitar o sofrimento a curto prazo implicará flertar com o derretimento e o desastre a longo prazo. A Europa precisa da imaginação e da liderança da Alemanha, o país com a economia em melhor situação. Mas há outro aspecto da pessoa de Angela Merkel - que quase certamente continuará no cargo de chanceler depois das eleições de setembro - que torna difícil o resgate da Europa. Como o seu mentor, Helmut Kohl, e como praticamente todos os que fazem parte do establishment político de Berlim, Merkel abraçou integralmente, até agora, a ideia de que uma moeda única que nos leve ao surgimento dos Estados Unidos da Europa é a única garantia concreta de paz e prosperidade para a Alemanha e para os seus vizinhos. Se isto não for possível, acredita a maioria das elites em Berlim, haverá a uma volta do nacionalismo, às rivalidades destruidoras e à guerra. É um dogma inflexível. Na verdade, a estratégia atual da UE que visa unir ainda mais os europeus está produzindo o resultado exatamente oposto. Para a Grécia, Chipre, Itália e Espanha, a Alemanha tornou-se a grande vilã, e Merkel é demonizada como “fascista financeira”. Voltando ao meu piquenique com Merkel, admiro sua abordagem científica dos problemas. Mas, evidentemente, ela é também um animal político. Ela tem um lado empresarial excepcionalmente rigoroso. Ela “tem” poder. E a tarefa que está à sua frente é assustadora, além de um delicado trabalho de equilíbrio. Se ela fracassar, as divisões da Europa se aprofundarão e os cidadãos alemães irão às ruas. Não acredito que isto vá acontecer: Merkel “faz” história também. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA*JEFFREY GEDMIN É PRESIDENTE E CEO DO LEGATUM INSTITUTE EM LONDRES. ESCREVEU ESTE ARTIGO PARA A FOREIGN POLICY

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