Fúria coletiva. Morto por desmaiar

Mais que ao Estado, os linchadores se opõem ao corpo social e tentam subjugá-lo

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Por JOSÉ DE SOUZA MARTINS , PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO e É AUTOR DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM SIMPLES (CONTEXTO)
Atualização:

JOSÉ DE SOUZA MARTINSA multidão enfurecida vem se tornando personagem de crescente relevo na sociedade brasileira, nas invasões, nos quebra-quebras, nos linchamentos. Numa sociedade de maiorias difusas, invertebradas e mesmo silenciosas, as minorias exaltadas vêm cada vez mais demarcando e restringindo os limites da legitimidade do Estado, da lei e da própria sociedade, da qual se divorciam para constituir-se. Mais do que ao Estado, a multidão opõe-se à sociedade e autoritariamente tenta subjugá-la, impondo-lhe sua vontade unilateral pela violência quase sempre gratuita. Vimos isso em diferentes episódios recentes. O linchamento de um motorista inerte de ônibus, que desmaiara com o veículo em movimento e abalroara carros e motos, além de atropelar e ferir uma pessoa, é indício de uma inversão perigosa de códigos de referência na conduta social. Em São Leopoldo, na Grande Porto Alegre, três jovens, entre 18 e 23 anos de idade, na mesma noite de domingo, mataram a socos, pontapés e pedrada um morador de rua. Assim como os assassinos do motorista consumaram o crime com pancadas de um extintor de incêndio em sua cabeça, os assassinos do sem-teto completaram o crime batendo-lhe na cabeça com uma pedra. Indícios da intenção de desfigurar, desidentificar e anular no outro a condição de pessoa. Ainda na mesma noite do dia 27, 300 camelôs ilegais, impedidos pela polícia de montar suas barracas na chamada feirinha da madrugada, no Brás, em São Paulo, enfrentaram a polícia, incendiaram um ônibus e dois carros, insinuando estar armados, incendiaram uma loja e aterrorizaram moradores. No Brasil, a emergência das multidões enfurecidas vem se dando de maneira particularmente mais intensa desde o fim do regime autoritário, como uma espécie de explosão libertária de tensões reprimidas durante a longa duração da ditadura. Não quer isso dizer nostalgia pela ordem que o regime de exceção, na verdade, não teve. Mas exprime a não menos autoritária concepção de liberdade que se difundiu na sequência da ditadura. Aberta ao arbítrio das interpretações, em nome do princípio de que a liberalidade da lei é melhor do que o seu contrário, estimula e secunda essas violências. Sobretudo porque nossa compreensão popular de democracia e de liberdade ainda se enraíza em tradições autoritárias que remontam ao beco sem saída da lógica da escravidão. A liberdade acabou sendo interpretada como direito de vingança. O fenômeno das multidões ativas está muito associado a momentos de transição social e de incerteza quanto aos valores que devem nortear os rumos da sociedade. Está também associado a transições concluídas, mas insuficientemente, em que os agentes sociais que a conduziram não tiveram completa e adequada consciência das tensões nela envolvidas e dos desencontrados protagonismos de um novo e diferente querer social. Gustave Le Bon, pai da psicologia das multidões e referência fundamental das interpretações que nas ciências humanas procuram compreender a originalidade desses agrupamentos anômalos, sublinhou o quanto a multidão é sujeito coletivo e temporário, de orientação diversa da dos indivíduos que a compõem. Sobretudo porque a multidão é irracional, coloca entre parênteses os valores da civilidade e a compreensão de que o direito é a contrapartida do dever. Em face de casos como os mencionados acima e de reiteradas ocorrências do mesmo tipo, aqui no Brasil, todas as evidências sugerem que a multidão é o refúgio dos amedrontados. Calados e acomodados na solidão do indivíduo, seus participantes multiplicam várias vezes, no volume da multidão, a força de seu descontentamento individual, de suas raivas ocultas e de seus ressentimentos. A desproporção da fúria coletiva em relação aos fatores que a desencadeiam, que se evidencia nos efeitos trágicos da violência descabida, é a mais importante indicação da transfiguração a que Le Bon se refere.As evidências colhidas em mais de 2 mil casos de linchamento e tentativas ocorridos no Brasil nas últimas décadas mostram que a covardia que se esconde por trás do anonimato dos participantes da multidão nem por isso é imune ao cálculo. Embora a conduta da multidão seja basicamente irracional, a comparação de ocorrências semelhantes em situações diferentes mostra-nos que a multidão é mais prudente de dia e mais violenta de noite, porque sabe que a visibilidade seria fatal aos seus participantes. Destituída de uma meta social de orientação, construtiva, a multidão não é política, não negocia com a sociedade, não reconhece a legitimidade do outro, não se vê na mediação das estruturas sociais e políticas nem na busca do consenso que possa abrigar suas demandas, porque no geral irracionais. A frequência de ações antissociais da multidão em nosso cotidiano, as dificuldades para que a lei se imponha e mesmo a leniência, a omissão e até a cumplicidade dos que deveriam fazê-lo é um preocupante indício de que a desordem já se transformou entre nós numa instituição.

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