Futebol versus Sociedade

No campo da corrupção, os meandros da bola fizeram tabelinha com o improviso e a falta de ética

PUBLICIDADE

Por Hilário Franco Júnior
Atualização:

Terminado o Campeonato Brasileiro de 2007, no fim de semana seguinte foi promovida no Rio de Janeiro uma partida entre a Seleção Olímpica nacional e a Seleção de Craques do Campeonato. Essa "festa", como definiram os organizadores, foi emblemática. Havia menos de 9 mil espectadores presentes no estádio, a maioria deles mais interessada no desempenho dos craques (?) de seus clubes que no da equipe que representa o conjunto da Sociedade e vai disputar em Pequim, no próximo ano, o único título futebolístico que o País ainda não conquistou. O episódio ilustra bem o fenômeno brasileiro de preponderância dos interesses segmentados sobre os coletivos. Nada surpreendente, pois, se colocarmos em segundo plano os aspectos esportivos do futebol, ele se revelará precioso ponto de observação sobre a sociedade. Mas como tal mecanismo é complexo, deixemos de lado nesse momento a análise acadêmica e continuemos no clima festivo de fim de ano imaginando nosso País como uma partida entre seu Futebol e sua Sociedade. Ambos têm obviamente a mesma origem, porém não os mesmos interesses, como lembra o evento acima. Ambos evidentemente interagem, como quaisquer adversários, mas nosso jogo faz-de-conta é feio, muitas vezes violento, porque os estilos são parecidos. A Sociedade brasileira dá maus exemplos ao Futebol brasileiro, e este reforça os comportamentos improvisados e eticamente ruins daquela. Façamos um compacto do segundo tempo dessa partida imaginária que se estendeu por todo 2007. Em julho, nosso Futebol, mesmo sem brilhantismo, consegue conquistar a Copa América, e vencendo na final a Argentina. Golaço. Mas a Sociedade logo reage com sua entranhada prática de parcialidade e impunidade. Um dos artilheiros do campeonato nacional, jogador do clube então líder, Dodô, do Botafogo do Rio, é pego no exame de dopagem. É suspenso por 120 dias. Três semanas depois, porém, a prova científica é esvaziada por sutilezas jurídicas em novo julgamento no qual o jogador é absolvido, mesmo sem fatos novos. A rigor o fato novo não se dá em relação ao julgado e sim aos julgadores: quatro dos oito membros do pomposamente chamado Superior Tribunal de Justiça Desportiva são botafoguenses. A mesma sorte não teve, por exemplo, Alex Alves, do Juventude de Caxias do Sul, punido pela mesma razão com a mesma pena, que precisou cumprir integralmente. No mesmo mês, conclusão lógica de situação que se estendia desde 2004, o presidente do Corinthians, Alberto Dualib, é indiciado por desvio de dinheiro do clube no acordo feito com a misteriosa MSI, firma de fachada para lavagem de dinheiro suspeito de investidores russos. Com a crescente pressão, Dualib é afastado do cargo no começo de agosto e em setembro renuncia para evitar o impeachment. O Futebol levou esse gol por jogar como a Sociedade, e esperar a mesma impunidade que nela. De fato, desde fins de maio outro presidente (Renan Calheiros), de outra instituição (Senado), também se vê envolvido em escândalos até renunciar, em dezembro. Em ambos os casos a prática corrupta e corporativista revela-se semelhante. Conselheiros do clube e senadores da República colocam em primeiro lugar seus interesses imediatos e pequenos, não os de milhões de torcedores e milhões de cidadãos. Em ambos os casos a jogada termina de forma trágica: rebaixamento do Corinthians à Série B do campeonato nacional, rebaixamento do Senado à condição de uma "Casa" (como gosta de se autodenominar) de tolerância em todos os sentidos da expressão. O jogo - de baixo nível - continua empatado. No primeiro dia de agosto, o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, dá uma declaração espantosa. Um ano após a Copa da Alemanha, ele diz que a preparação da seleção tinha sido uma bagunça, uma festa constante. E pergunta indignado: "Como ninguém viu que aquilo não poderia dar certo?" Sendo ele o chefe, quem negociou o local de treinamento, quem escolheu a comissão técnica, enfim o responsável por tudo que criticava, justificou-se afirmando que na época não sabia que aquilo ocorria. Ponto contra o Futebol. Comprovando como nossa partida imaginária (contudo não menos real) é acirrada, no dia seguinte o presidente Lula, depois de quatro anos e meio de governo, depois de dez meses do acidente aéreo da Gol no Brasil central e de duas semanas do acidente da TAM em São Paulo, assevera que a crise no setor aéreo começou há 60 anos. Sendo ele o chefe, quem escolheu o ministro encarregado do setor, quem nomeou os membros da agência controladora, enfim, o responsável último, justificou-se afirmando que não sabia de nada (como em relação ao mensalão). Ponto contra a Sociedade. No último dia de outubro, rapidamente o Futebol marca dois gols. Um, retumbante, é o anúncio de que o Brasil será sede da Copa do Mundo de 2014. O orgulho dos torcedores explode. "Éééé campeãooo...", começam a cantar os mais afoitos. Outro, ofuscado pelo anterior, porém talvez mais importante, é a definição do campeão nacional com quatro rodadas de antecipação, sem que reaparecessem antigas críticas ao sistema de pontos corridos que premia a organização e a constância, não a loteria das partidas eliminatórias. Mas logo o brilho dos dois feitos é empanado. Dias depois do sucesso da visão moderna e gerencial da recente fórmula do campeonato, a velha mentalidade, predatória e imediatista, mostrou que não tinha desaparecido. É ela que provoca a tragédia da Fonte Nova, quando parte da arquibancada rui, ocasionando sete mortes e muitos feridos. Sabia-se há tempos que as condições do estádio eram precárias, e nem as autoridades públicas nem os dirigentes esportivos tomaram providência - prova da sintonia entre Sociedade e Futebol, que, se às vezes rivalizam, na maior parte do tempo funcionam como espelho um do outro. O entusiasmo inicial pela Copa é substituído pela desconfiança. Será boa jogada para o Futebol trazer a Copa para o Brasil, sabendo que a Sociedade tem grandes craques nesse tipo de jogo? Afinal, eles conseguiram na reforma de aeroportos desviar muito dinheiro, R$ 41 milhões em Santos Dumont, R$ 254 milhões em Cumbica. Superfaturamentos pequenos (15% e 30%, respectivamente) diante do que ocorreu nas obras da sede da Procuradoria-Geral da República (50%) e do Tribunal Superior do Trabalho (100%). No total, cerca de meio bilhão de reais de dinheiro público desviados de obras públicas este ano. Ora, com R$ 3 bilhões de verba pública estimada só para construir ou reformar estádios candidatos a sediar jogos da Copa, muitas falcatruas serão possíveis. Governantes de Estados de pouco Futebol e muitos problemas sociais sonham com grandes estádios levantados com recursos públicos: em Alagoas, para 47 mil pessoas, ao custo de R$ 260 milhões; no Rio Grande do Norte, para 65 mil pessoas, por R$ 400 milhões, etc. Ah, mas no campo de jogo o brasileiro é insuperável, lembram os otimistas de plantão, tanto que neste fim de ano Kaká foi escolhido o melhor jogador do mundo pela revista francesa France Footbal, pela inglesa World Soccer, assim como pela Uefa e pela Fifa. Melhor ainda, o argentino Lionel Messi, segundo colocado nessa premiação, teve menos da metade dos votos de Kaká. Sim, porém entre os 28 melhores listados pela Fifa, 3 eram brasileiros, 3 argentinos, 4 ingleses e 5 italianos. E não se pode desconsiderar que a população brasileira é quatro vezes maior que a argentina ou a inglesa e três vezes maior que a italiana. Ademais, a bem da verdade, Kaká é, Futebolisticamente falando, europeu há cinco anos. Como ele, boa parte dos 1.085 brasileiros que se transferiram para clubes estrangeiros ao longo de 2007 não buscou apenas bom emprego, mas também reconhecimento, respeito, cidadania. É a Sociedade que esvazia o Futebol de seus astros. Então, a jogada que sintetiza nosso jogo imaginário é Breno, Ilsinho, Lucas, Pato, Pepe, William e outros jovens se defendendo, Lula, Dualib, José Dirceu, Renan Calheiros, Ricardo Teixeira e todos os mensaleiros atacando. A bola bate num, bate noutro, quica aqui, espirra ali... e entra. Gol da Sociedade. O árbitro não sabe a quem atribuir a autoria. Gol contra de Pato, que deixou o Brasil com apenas 17 anos para jogar no Milan? Ou de Breno, que jogou apenas 39 partidas com seu clube brasileiro e já foi, com 18 anos recém-completados, para o Bayern de Munique? Ou dos dirigentes que não conseguem outras fontes de renda para seus clubes a não ser a venda periódica de jogadores? Ou da televisão, que coloca partidas quase às 22 horas por causa da telenovela e assim espanta público dos estádios? Ou dos torcedores que brigam muito, vão pouco aos estádios e só compram produtos pirateados com as grifes dos clubes, privando-os assim de importantes receitas? É difícil dizer, e de toda forma o resultado é inegável: o Futebol sofreu mais uma derrota. A Sociedade ganhou. Ganhou? Mas quem morre nas brigas de torcidas organizadas não são cidadãos? Quem perde com lavagem de dinheiro e sonegação fiscal nos clubes não são cidadãos? Quem sofre com a pobreza técnica e emocional de nossas competições não são cidadãos? Quem... Deixa pra lá, é melhor desligar a TV da imaginação, pois isso é show de horrores. Mas que barulho é esse na rua, com rojões, gritos e sirenes? Será algum louco comemorando? Comemorando o que, Zé? Ah, foi mais uma tentativa de assalto, tem um corpo caído no chão. Se a partida tivesse continuado, sem dúvida seria pênalti contra a Sociedade, expulsão de jogadores, destituição da diretoria, revolta geral dos torcedores. Mas não, não acontecerá nada. Os dirigentes da Sociedade vão prometer mundos e fundos, vão distribuir pequenos brindes aos torcedores da arquibancada, continuarão a mandar e tudo ficará na mesma. Será que dá pra desligar a janela também? *Hilario Franco Júnior é professor da pós-graduação da USP, onde ministra curso sobre a história social do futebol. É pesquisador da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. Autor, entre outros, de A dança dos Deuses - Futebol, Sociedade, Cultura (Companhia das Letras) Grandes lances do esporte 2007>> 20/05 Enfim, o gol mil Romário faz história: na vitória por 3 a 1 do Vasco sobre o Sport, pelo Campeonato Brasileiro, ele alcança, enfim, o milésimo gol. O cenário da festa é São Januário. Depois da marca, ele ainda joga algumas partidas pelo Vasco e atua, inclusive, como técnico do time. No fim do ano, o jogador é oficializado no comando do Vasco, mas é pego num exame antidoping por usar a substância finasterida (contra queda de cabelo) e condenado a 120 dias de suspensão. 14/06 Além do Baixinho... O atacante Dodô, do Botafogo, é pego no exame antidoping, pelo uso do inibidor de apetite femproporex. Em julho, a jogadora de vôlei Jaqueline é flagrada pelo uso de um chá contra celulite. O caso da nadadora Rebeca Gusmão vem à tona em setembro. A Federação Internacional de Natação analisa um exame antidoping da nadadora que apresentou índice anormal de testosterona em 2006. Em dezembro, a Organização Desportiva Pan-americana confirma o doping de Rebeca nos jogos do Rio e ela perde as quatro medalhas que conquistou na competição. 03/07 Manobra perigosa A polícia encontra documentos da Ferrari na casa do projetista-chefe da McLaren, Mike Coughlan, supostamente passados pelo ex-mecânico-chefe da Ferrari Nigel Stepney. A McLaren é punida pela espionagem com multa de US$ 50 milhões e perda de todos os pontos no Campeonato de Construtores. 13/07 O Pan é nosso Tem início a 15ª edição dos Jogos Pan-Americanos, no Rio. Na cerimônia de abertura, o presidente Lula recebe vaias no Maracanã e não encerra seu discurso. O Brasil tem o melhor desempenho da história na competição, com 54 medalhas de ouro, 40 de prata e 67 de bronze. As 161 condecorações deixam os brasileiros em 3º lugar, atrás dos EUA e Cuba. O recorde tem contribuição decisiva de Thiago Pereira, com 6 ouros na natação. 22/07 Adiós, Cuba O boxeador Guillermo Rigondeaux, um dos maiores ídolos de Cuba, deserta durante os Jogos Pan-Americanos do Rio. Outros três atletas já haviam feito o mesmo. Temendo um abandono em massa, grande parte da delegação de Cuba vai embora antes da festa de encerramento. O governo brasileiro prende dois dos desertores. Segundo a Polícia Federal, eles pedem para retornar a Cuba e um avião da Força Aérea Brasileira os leva de volta à ilha. 24/11 As pontas do Brasileirão O São Paulo recebe a taça de pentacampeão brasileiro, depois de conquistar o título com quatro rodadas de antecedência. Na outra ponta da tabela, o Corinthians é rebaixado à Série B - caem ainda Paraná, Juventude e América/RN. 17/12 Trinca de ouro Só dá Brasil na premiação da Fifa. Buru é eleito o melhor jogador de futebol de areia e Marta, a melhor jogadora de futebol do mundo, pela segunda vez. Mas o prêmio mais aguardado é o de Kaká, escolhido o melhor jogador do planeta. Ele é eleito com o dobro de pontos do segundo colocado, o argentino Messi.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.