Gatilho seletivo

Brasil agiu rápido contra EUA e Espanha - mas nem tanto quando Bolívia e Equador foram hostis

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Por Rubens Ricupero
Atualização:

O Brasil não perdeu tempo em aplicar a reciprocidade aos vistos impostos pelos EUA e à discriminação praticada pela Espanha. Anunciou que não hesitaria em reagir se o Reino Unido adotasse medidas contra brasileiros. No entanto, quando a Bolívia e o Equador cometeram atos muito mais hostis, o que se viu foi uma cacofonia de variações em torno do tema "paciência, pois são coitadinhos e devem ser tratados como crianças ou irresponsáveis". Não admira que mensagem tão confusa haja provocado confusão para o público no Brasil e para os países interessados em testar qual é o limite dos abusos que podem praticar antes de provocar reação brasileira. Aos primeiros sinais de complicações, o que o governo deveria ter feito era anunciar política clara e coerente. Essa política só poderia ter sido a de que estaríamos prontos para examinar as reivindicações e negociar, se cabível, mas sem ameaças, nem falsas expectativas. Qualquer fosse o resultado, defenderíamos sem vacilar os direitos do Brasil, de seus cidadãos e empresas. Em vez disso, desde a nacionalização do gás e das refinarias na Bolívia, tivemos dois anos e cinco meses de crise que se arrasta e desloca da Bolívia ao Equador, com risco de contagiar o Paraguai, indício seguro de que a resposta brasileira foi vacilante e ineficaz. Para complicar, essa resposta tem sido múltipla e contraditória. A do presidente se caracteriza por mescla de paternalismo e condescendência, no fundo ofensiva: são "irmãos menores", "fazem cena para ganhar plebiscito". Essa atitude só pode conduzir à complacência. Alguns ministros e o presidente da Petrobrás tentaram defender as empresas e invocar a arbitragem prevista nos contratos. Foram disciplinados por estarem falando demais, sinal de que outros estão falando de menos. O assessor presidencial personaliza as relações entre Estados. Para ele, tudo deveria ser resolvido num mano a mano entre os presidentes, como se estivéssemos nos tempos absolutistas de Luís XIV. "O fraco rei faz fraca a forte gente." Os que não querem que isso aconteça engrossam em sentido oposto, como no decreto do Ministério da Defesa mirando os atos lesivos ao povo brasileiro ainda que não signifiquem "invasão ao nosso território". Cacofonia é isso. Conviria lembrar como, no fervor da recém-proclamada República, o chanceler Quintino Bocaiúva assinou com a Argentina acordo para dividir ao meio a zona disputada de Palmas, em nome da "fraternidade das pátrias americanas". O repúdio foi unânime e envolveu até o imperador no exílio. Rejeitado o acordo, voltou-se à arbitragem, que permitiu ao barão do Rio Branco ganhar para o Brasil a totalidade do território. Não se trata de falta de compreensão do momento conturbado vivido pelos países que escolheram a via da "refundação". Por mais que essa causa se recomende à nossa solidariedade, ela perde toda a razão no momento em que recorre à violência, à ilegalidade e às ameaças. Ora, uma das marcas registradas dos refundadores Chávez, Morales e Correa é a truculência. Semelhantes nos métodos, não negociam com empresas, não aceitam perícias independentes. Ditam, exigem sob acusações e ameaças de expulsão. Se a empresa não cede, ocupam as instalações com tropas. No Equador, foi-se mais longe: acenou-se com o calote de empréstimos do BNDES e suspenderam-se garantias de funcionários, obrigados a se asilarem na embaixada como criminosos. Não falta muito para chegar ao finado Trujillo, que comprava firmas por oferta irrisória, pois, rezava a sabedoria popular da República Dominicana: "Si no vende el proprietario, venderá la viuda..." Com governos tais não existe possibilidade de integração. Esta implica convergência de valores sobre democracia, ordem econômica, cumprimento de contratos. Subentende tratar cidadãos e empresas de vizinhos como futuros co-nacionais, não como polvos imperialistas. Países em fase aguda de nacionalismo não são parceiros confiáveis de projetos que aumentam a dependência e vulnerabilidade energética do Brasil. É melhor reconhecer essa realidade que aferrar-se à retórica vazia de uma integração fantasista. Tampouco funcionam as supostas afinidades ideológicas. As úteis missões de enviados do PT serviram apenas para demonstrar o perigo de uma diplomacia que, em vez de representar o país como um todo, fala em nome de um "partido", isto é, de um fragmento, um pedaço da nação. Revelaram-se igualmente exageradas as expectativas depositadas no bom-mocismo dos encontros presidenciais. Esperam até hoje os que achavam que tudo seria resolvido de forma "civilizada" numa chamada telefônica de Correa, presidente de um governo que faz pouco do Estado de Direito, fundamento da civilização. É erro crer que a ação do nosso presidente ou do seu partido possa ser mais que um complemento, nem sempre útil, à diplomacia profissional, desde que esta seja expurgada de ligações com partidos e ideologias e se encarne numa instituição que simbolize a continuidade do Estado brasileiro. Não se deve ter medo ou vergonha de invocar o direito do País e seus cidadãos. Se os ataques forem públicos, a defesa tem de ser equilibrada, mas pública. Repelir ataques, opor defesa jamais deve ser visto como agressão, a não ser nos versos franceses pintados nas casas de cachorro: "Este animal é malvado/Defende-se quando atacado". Não cabe desculpar os agressores em razão do tamanho, nível de desenvolvimento ou dificuldades políticas. Afinal, são países independentes há quase 200 anos e como membros da ONU estão obrigados a respeitar as normas de convívio internacional. O governo está aprendendo com os maus resultados de suas faltas, conforme acabou por demonstrar com o Equador e o Paraguai. Sua curva de aprendizado, contudo, poderia ter sido mais rápida se não tivesse abandonado esses princípios. Se, por exemplo, não houvesse cometido o erro de declarar em nota infeliz que era direito soberano da Bolívia rasgar de modo unilateral um tratado que ela assinara também no uso de sua soberania e lhe criava obrigações com o Brasil. Está na hora de voltar a Rio Branco: "O Brasil do futuro há de continuar invariavelmente a confiar acima de tudo, na força do Direito e (...) pela sua cordura, desinteresse e amor da justiça, a conquistar a consideração e o afeto de todos os povos vizinhos em cuja vida interna se absterá de intervir". *Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda, foi secretário-geral da Unctad - Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento TERÇA, 14 DE OUTUBRO Calote será fim do comércio O comércio entre Brasil e Equador acabará se o país não pagar os US$ 242,9 milhões devidos ao BNDES, disse o chanceler Celso Amorim. Para o ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, caso o Brasil pare de investir os equatorianos serão os mais prejudicados.

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