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PS francês revê seu ideário e sepulta a esperança revolucionária em troca das promessas do mercado

Por Andrei Netto
Atualização:

As esperanças revolucionárias morreram - ao menos para o mais importante segmento do eleitorado francês que ainda as nutriam. O último sopro da luta de classes marxista que sobrevivia no ideário do Partido Socialista (PS) francês se esvaiu nesta semana, após 18 anos de sobrevida. O atestado de óbito - ou a nova Declaração de Princípios - foi apresentado ao público pela cúpula do PS, na terça-feira, em Paris, e marca a oficialização das convicções sociais-democratas de um dos mais importantes partidos políticos progressistas do Ocidente. Reescritos pela quinta vez em sua história secular, os cânones socialistas agora ignoram expressões plenas de significados no século 20, como "revolução", "propriedade coletiva dos meios de produção" ou "operariado". Em seu lugar, constam "desenvolvimento sustentável", "economia mista", "dinamismo privado", ambientalismo e novas tecnologias. A Declaração de Princípios pode ser entendida como a matriz do pensamento no Partido Socialista francês. Fundada em 1905, na efervescência dos movimentos intelectuais e trabalhistas que fervilhavam na Europa de então, a Seção Francesa da Internacional Operária (SFIO), gênese do PS atual, havia sido reformada em seus pilares ideológicos na esteira de quatro grandes eventos sociais do século 20: a ascensão dos movimentos operários, a 2ª Guerra Mundial e os primeiros sinais da Guerra Fria, as revoltas estudantis e trabalhistas de maio de 68 e a queda do Muro de Berlim, em 1990. Essa linha do tempo deixa um traço que se esvai: a fé na revolução. Dezoito anos depois da queda do comunismo real, vem à tona a ruptura entre os socialistas franceses e a transformação radical. O cenário, agora, é a globalização. Os atuais 22 artigos da declaração trazem, cada um, o peso da história. Em 1905, o documento exprimia o desejo de mudança radical. "O Partido Socialista é um partido de classe que tem por objetivo socializar os meios de produção e de troca, ou seja, transformar a sociedade capitalista em uma sociedade coletivista ou comunista." Hoje, 103 anos depois, "o sistema desejado (...) é de uma economia mista, combinando um setor privado dinâmico, um setor público com serviços de qualidade e um terceiro setor de economia social". Entre um e outro momento, o que se constata é o declínio - até a extinção - do apego revolucionário e sua substituição pela ambição da reforma. "O Partido Socialista é um partido reformista" define, com todas as letras, o artigo 13 das novasdisposições. "Ele não considera as relações de força de um momento como irremovíveis ou insuperáveis." Este é o trecho no qual o texto mais se aproxima da idéia de "luta de classes", que já não constava dos dogmas de 1990. Publicado nesta semana para ser homologado na convenção do partido em junho, o documento mantém a crítica ao capitalismo, "criador de desigualdades, portador de irracionalidades, fator de crises que persistem até hoje, na era da globalização dominada pelo capitalismo financeiro". O discurso, de matizes keynesianos, prega uma "sociedade nova, que ultrapasse as contradições do capitalismo", mas em lugar da apologia à superação do sistema baseado na propriedade privada a proposta é a conciliação: "Os socialistas são partidários da economia social e ecológica de mercado, uma economia regulada pelo poder público, como também pelos parceiros sociais". O PS prega agora a renovação do "Estado social" - terminologia forjada pela social-democracia alemã -, realizável por meio da reforma, cautelosa, do Estado de bem-estar social. "Este privilegia o investimento produtivo em detrimento da renda. Assegura a seguir proteção contra os riscos sociais. E repousa sobre a redistribuição. "O Estado", diz agora o texto, "deve ser regulador para conciliar a economia de mercado, a democracia e a coesão social". E agrega: para que possa "privilegiar a educação, a pesquisa, a inovação e a cultura". Neste modelo, o crescimento deve ser baseado no princípio do desenvolvimento sustentável. Um dos primeiros objetivos do partido, assegura a declaração, é a "emancipação completa da pessoa humana e a salvaguarda do planeta". Ambientalismo e defesa da inovação tecnológica são, aliás, temas recorrentes no texto, a ponto de novíssimas - e controversas - ciências serem citadas. "A expansão tecnológica, o desenvolvimento das nano e biotecnologias e da engenharia genética despertam questões essenciais para o futuro da humanidade." A nova matriz de pensamento socialista também preserva algumas antigas bandeiras, introduzidas por líderes históricos da esquerda ao longo do século 20, como Jean Jaurès e Léon Blum. São metas como pacifismo, internacionalismo, solidariedade para com países subdesenvolvidos, defesa dos direitos humanos, Estado laico e o pilar da França moderna, a República. Embora consensual entre membros da cúpula do partido, o texto despertou duas polêmicas internas. A primeira, ao defender -- pela primeira vez de forma franca - a União Européia. "O PS é um partido europeu", enfatiza, para desgosto dos partidários do "não" à constituição européia, recusada pelos franceses em referendo realizado no ano de 2005. A segunda polêmica, na verdade, levou ao reconhecimento do feminismo, até hoje ignorado nos estatutos. Um novo parágrafo 14 foi escrito para aplacar antigas mágoas: "O PS é feminista e age em favor da emancipação das mulheres". Ao desfraldar a bandeira da reforma e sepultar os ossos da revolução, o partido quis emitir uma mensagem clara. "A nova declaração avança ao incorporar idéias e práticas do PS quando está no poder. Somos hoje um partido socialista reformista, que usa o poder para transformar", reafirmou ao Estado Alain Bergonioux, historiador, secretário nacional da agremiação e um dos dois autores do texto. "Era preciso dizê-lo sem ambigüidades." Bergonioux acredita que seus contemporâneos de partido fizeram um inventário ideológico para encarar o século 21. Sustenta que a idéia de transformação social não está em contradição com a idéia de mercado, a ponto de negar qualquer incongruência conceitual entre "socialismo" e "propriedade privada". "Há muito tempo renunciamos à revolução", admite François Hollande, secretário-geral do partido, citando o presidente socialista François Mitterrand, eleito nos pleitos longínquos de 1981 e 1988. Abatido pela ausência de uma liderança clara e por derrotas em três eleições presidenciais sucessivas - uma delas no trágico abril de 2002, no qual Lionel Jospin obteve 16% do eleitorado - o primeiro desafio do PS com seu novo ideário será reconquistar corações e mentes na França. Tarefa dura. Se a esperança revolucionária de fato desapareceu, resta agora ao partido demonstrar quais são as propostas práticas da esperança reformista. Antes que vire desilusão.

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