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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Glória aos atletas da persistência

Adalberto Cardoso, Wilma Rudolph, Joaquim Cruz, [br]Nancy Kerrigan - eles estão dentro. Jaqueline está fora

Atualização:

Jaqueline já pode ir para o Guinness. Como a primeira atleta afastada de um pan-americano por motivo fútil. Anfetaminas e anabolizantes, ainda vá lá; mas ingerir droga para eliminar celulite é levar longe demais a vaidade feminina. Ah, se o Barão de Coubertin pudesse ver que o importante, para certas atletas, não é mais competir, nem sequer vencer, mas ter um corpinho na medida para as páginas da Playboy. Se Jaqueline tivesse convencido a Confederação Brasileira de Vôlei e o Comitê Olímpico de que sibutramina não é doping, apenas um inofensivo moderador de apetite, e, reintegrada à nossa seleção de vôlei, ajudasse-a a conquistar a medalha de ouro, seu nome não iria parar no Guinness, mas na história dos Jogos Pan-americanos - e, por extensão, dos jogos olímpicos - onde faria companhia a outros heróis visceralmente afinados com o verdadeiro espírito olímpico. Heróis como Adalberto Cardoso, Wilma Rudolph, Abebe Bikila, Manoel dos Santos, Joaquim Cruz, Guilherme Paraense, Nancy Kerrigan, que punham a competição acima de tudo e em função dela superaram tremendos limites físicos e psicológicos, além de obstáculos burocráticos. Vários deles afinal levaram o ouro, outros não, e um dos brasileiros citados acabou na rabeira de uma corrida. Todos, porém, tornaram-se heróis olímpicos, e não vítimas da irresponsabilidade e da ignorância, como o sueco Hans Gunnar, os americanos Rick Dumont e Ben Johnson, o finlandês Martti Vainio, o húngaro Andor Szanyl. Ou da vaidade, como a nossa Jaqueline. A obsessão da corredora americana Wilma Rudolph não era emagrecer ou manter-se esguia e sem celulites, mas engordar, tomar corpo de atleta. Paupérrima, fora um velcro para doenças na infância subnutrida: poliomielite, pneumonia e escarlatina. Dos oito aos 12 anos, andou com dificuldade, mas, aos 20, ganhou três medalhas de ouro nos Jogos de Roma, em 1960, e o merecido apelido de "Gazela Negra". Foi naquela olimpíada que o nadador paulista Manoel dos Santos empalmou o bronze nos 100 metros nado livre, apesar de gripado e atacado por uma amigdalite. Em condições normais, talvez tivesse mantido o recorde mundial na especialidade, estabelecido três anos antes, e trazido o ouro para o Brasil. Mas era um épico com outra dramaticidade que os deuses do Olimpo lhe haviam reservado. Também foi com enorme sacrifício que o etíope Abebe Bikila impôs a superioridade de suas pernas estabelecendo dois recordes olímpicos. Primeiro africano a levar para casa uma medalha de ouro, só sabia correr como os pastores de ovelha de sua terra: descalço. Já tinha um par de botas e servia na guarda palaciana do imperador Hailé Selassié quando, sempre descalço, completou a maratona dos Jogos de Roma com 4 minutos de vantagem sobre o segundo colocado. Repetiria o feito quatro anos depois, em Tóquio, calçando sapatilhas por imposição do Comitê Olímpico, e sem dar a menor bola para a operação de apêndice a que se submetera cinco semanas antes do início dos Jogos. Pior do que correr descalço é correr com uma perna dois centímetros mais curta que a outra. Não para Joaquim Cruz, nosso maior meio-fundista, campeão nos 800 metros nas Olimpíadas de Los Angeles de 1984, prata nos Jogos seguintes, em Seul (Coréia), e duas vezes ouro nos pan-americanos de Indianápolis (1987) e Mar del Plata (1995). Adalberto Cardoso não teve a mesma sorte de Joaquim Cruz, mas foi do patético ao sublime, em outra olimpíada realizada em Los Angeles, em 1932. Último a cruzar a reta final da prova dos 10 mil metros, passou um bom tempo solitário na pista, mas não desistiu de percorrê-la de cabo a rabo. Comovida com a pertinácia do brasileiro, a platéia apelidou-o, no ato, de "Iron Man" (homem de ferro), e nem depois que ele completou a corrida parou de gritar seu nome; ou melhor, seu apelido. Quase não fomos aos Jogos de 1920, na Antuérpia. Em cima da hora, o espírito olímpico fez valer sua força para vencer dificuldades, inclusive (ou sobretudo) as financeiras. Na maior pindaíba, nossos 24 atletas foram obrigados a dormir nos dois refeitórios de um navio alemão, onde só ficavam à vontade quase ao raiar do sol, depois que o último passageiro trocava o bar pelo camarote. Desembarcaram em Lisboa insones e atrasados, e, se não fosse o encarregado de negócios da embaixada do Brasil, nossa delegação de tiro não teria chegado a tempo de disputar as provas eliminatórias na Antuérpia. Tampouco dormiram bem no trem que, debaixo de um toró, levou-os até a Bélgica, as passagens custeadas do próprio bolso pelo diplomata brasileiro. Mas a odisséia estava apenas começando. Em Bruxelas, a delegação de tiro foi roubada. Na Antuérpia, outra surpresa desagradável: sem dinheiro para alugar suportes para os alvos de treinamento, tiveram de erguê-los com suas próprias mãos. Não obstante, saímos com três medalhas e nenhum ferido. Guilherme Paraense ficou com o ouro de tiro de revólver, Afrânio Costa com a prata da competição de pistola, e toda a equipe com a medalha de bronze. A turma dos esportes aquáticos sofreu mais - e sem recompensas. Levamos barcos de qualidade inferior, aerodinamicamente defasados, e pagamos caro por mais esse atestado de pobreza. Nas piscinas, outro desafio inesperado: com a água a 3 graus de temperatura, nenhum de nossos atletas, todos bons nadadores, conseguia treinar. Mas, ainda que treinassem, esbarrariam, durante as provas, em outra deficiência: o desconhecimento do crawl (nado livre) consagrado pelo havaiano Duke Kahanamoku e praticado pelos americanos desde 1912. Fácil entender por que Orlando Amêndola foi eliminado logo na primeira prova de natação. A história da patinadora Nancy Kerrigan está mais viva na memória de todos vocês, pois é recente e ganhou manchetes no mundo inteiro; foi até capa da revista Time e inspirou uma ópera de câmera. Um mês antes das Olimpíadas de Inverno de Lillehammer (Noruega), em 1994, Nancy foi agredida nos joelhos com uma barra de ferro, a mando, soube-se logo, do ex-marido de Tonya Harding, a maior rival de Nancy. Nem beneficiada pela agressão, Tonya conseguiu ir além do oitavo lugar. Nancy, mesmo prejudicada pela parada de 30 dias, acabou conquistando a medalha de prata. Episódios como esse desmoralizam o romantismo de Coubertin e levam água ao moinho do inveterado cético George Orwell, para quem o esporte era "uma inesgotável fonte de rancor" e as competições internacionais, "uma orgia de ódio". Mens insana in corpore sano. QUINTA, 12 DE JULHO Doping afasta Jaqueline A ponta Jaqueline, da seleção brasileira de vôlei, foi flagrada em exame antidoping realizado nas finais do Campeonato Italiano, em junho. Jaqueline disse ter tomado um "chá verde" contra celulite, que conteria sibutramina, substância proibida. Foi cortada do Pan.

Opinião por Sérgio Augusto
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