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Guardião de segredos

Você mandaria um postal contando seus pecados e angústias a um desconhecido no Maryland? Bem, 1 milhão de pessoas já fizeram isso

Por Jéssica Ferreira
Atualização:
Redistribuição. Mensagensrecebidas sãoselecionadas ecompartilhadas aos domingos no blog de Warren Foto: POSTSECRETPRESS.COM

O suicídio do ator Robin Williams, em agosto, provocou emoções distintas. O caso repercutiu no íntimo dos fãs, mas também no âmago de quem passava por tristeza semelhante à do ator. Em cartão-postal escrito anonimamente, alguém disse: “Robin Williams está me dando força para revelar a meu terapeuta os pensamentos que tenho tido nas últimas semanas”. Um segundo postal trazia, em frente à imagem do artista, os dizeres: “Com cada vida perdida para o suicídio, minha batalha contra a depressão parece mais e mais sem esperança”. As mensagens integram 1 milhão de segredos confiados à caixa de correio de Frank Warren nos últimos dez anos, desde que ele fundou o site PostSecret.

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Primeira comunidade virtual anônima, o site reúne segredos enviados de diversos países para o número 13345 da Estrada Copper Ridge, no Estado americano de Maryland, lar de Warren. Embora o PostSecret foque em cartões-postais, as mensagens que chegam à casa do seu fundador extrapolam para polaroides, colagens, notas fiscais, anéis de casamentos acompanhados de bilhetes e mesmo... chinelos. Frank Warren assumiu o papel de guardião dos segredos dessas pessoas, que confiam no anonimato, mas, principalmente, no receptor. 

Semanalmente, Warren lê centenas de postais, seleciona alguns e os publica, religiosamente, aos domingos, junto a confidências mais antigas. “Minha esperança é que essa composição de segredos não seja uma coleção de vozes individuais, mas um coro, uma conversa que permita a todos nós compreendermos as experiências de uma maneira diferente.”

O PostSecret é também o maior blog mundial sem anúncios: a contagem de visitantes já ultrapassou 694 milhões. “Nunca aceitei um dólar com propaganda no site. Sinto que o projeto tem esse propósito maior. Acho que os segredos que as pessoas compartilham são muito mais convincentes, intensos e verdadeiros do que aqueles que estamos acostumados a ouvir ou ler, e acredito que isso faça com que entrem no site toda semana”, pondera Warren.

A força dos temas, nos quais se inserem suicídio, guerras, contravenções e vícios, é uma das razões para que anônimos de variadas nacionalidades encontrem no PostSecret um motivo para visitá-lo fielmente. Mas também há vazão para o “divertido”. “Fui amante de dois pastores casados” pode ser lido em um dos últimos segredos publicados. Já em uma foto do Starbucks, postada há mais tempo, consta a frase: “Eu dou descafeinado a quem é rude comigo”. É possível encontrar até pais que pedem desculpa e temem pelo futuro genro desconhecido por acreditar que a filha seja uma psicopata. Certos segredos beiram entre o cômico e o trágico, como alguém que contou ter bagunçado toda a casa na ausência dos pais para que a mãe pensasse que o filho tem amigos e deu uma festa. Mesmo com tantas revelações, Frank Warren ainda consegue se apegar aos mais simples. “Teve um que guardei na cabeça, por algum motivo. É um segredo que diz ‘lembra daquela vez no banheiro público quando você acidentalmente esbarrou em mim? Eu deixei a porta do banheiro aberta de propósito’.”

Mas o que leva um típico americano de subúrbio a gerenciar segredos alheios? “Eu era dono de um pequeno negócio, tinha uma vida bem comum. Quando o PostSecret me encontrou, virou minha vida do avesso.” Começou com a primeira viagem a Paris, quando Frank Warren sonhou com três postais de O Pequeno Príncipe recém-comprados e guardados na mesa de cabeceira. No sonho, escrevia pequenas mensagens em cada um: “Evidência irreconhecível, de jornadas esquecidas, inconscientemente redescoberta”; “oráculo relutante”; e não conseguiu distinguir bem a terceira. De volta aos EUA, deu início ao projeto de “oráculo relutante”, distribuindo garrafas com frases breves dentro, inspirando quem as achava. Em Washington, espalhou 3 mil cartões-postais com seu endereço em livrarias, galerias e para pessoas na rua, convidando a que escrevessem suas intimidades e as enviassem para ele. 

Antes de o PostSecret alcançá-lo, no entanto, Warren já tinha esbarrado nas angústias do mundo. Fazia trabalho voluntário para linhas de prevenção do suicídio, nas quais sentia que as pessoas compartilhavam suas batalhas com ele. Talvez por isso consiga equilibrar a intensidade de tudo que recebe. O PostSecret parece uma zona de conforto na qual o indivíduo é inserido em um contexto maior, que o acolhe, apoia e não repreende. “Provavelmente a cada hora, cada dia, eu me lembro do segredo de alguém por algo que vi ou fiz. Por exemplo, dia desses eu estava usando o elevador, alguém apertou um botão e eu lembrei o segredo que diz ‘quando entro no elevador e alguém aperta um botão inferior ao meu, eu me sinto superior’”, diz, em meio a risadas. 

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Importante distinguir: o aplicativo do PostSecret, lançado em 2011, nada se assemelhava ao popular Secret, no qual é possível saber que a mensagem foi escrita por um amigo ou pessoa de círculo próximo. A intenção de seu precursor sempre foi manter o ambiente seguro. Nem as fotos postadas podiam ser rastreadas por meio de códigos. Ainda que contasse com dedicação e cuidado, o aplicativo não durou mais que três meses. “Ele foi o primeiro aplicativo anônimo, e desde então surgiram dúzias. Não vimos como manter um lugar seguro para as pessoas compartilharem seus segredos. Havia bullying e quebradores de regras, então tivemos que fechá-lo. Não sei como esses outros aplicativos estão gerenciando isso, mas definitivamente acho que ainda há batalhas e problemas com os abusos de usuários”, critica. Muitos dos segredos compartilhados no aplicativo podem ser conferidos no livro The World of PostSecret, lançado na primeira semana de novembro. Com mais de 300 páginas e a maior quantidade de revelações reunidas, já é o sexto lançado por Warren.

Em meio a 1 milhão de confidências, não teria Frank Warren as próprias? “No segundo livro, há uma capa da obra O Apanhador no Campo de Centeio na qual está escrito ‘se você sente que vai ficar insano e está preso em um ambiente disfuncional, você não está louco’. Eu gostaria de ter ouvido isso no ensino médio e na faculdade, quando estava sozinho e perdido - eu precisava saber disso. Foi um segredo que escrevi para o meu eu mais novo”, confessa. Em cada uma das seis edições do PostSecret há uma revelação oculta de Warren, perdida em meio às de seus remetentes.

Mais explícitas, as confissões ocupam os palcos nos quais ele discursa. E outro segredo se revela: ele tinha medo da vulnerabilidade com o público. Quando lançou o primeiro livro, as sessões de autógrafos o deixavam aterrorizado. Para acalmar o coração, recorria a remédios. “Com o tempo, consegui superar meu medo, porque senti que o trabalho que fazia estava além de mim.” Os segredos dele por vezes ressoam para a audiência não só no microfone, mas também na internet. Sua conferência no TED Talks já foi vista mais de 2 milhões de vezes. “É uma ótima introdução ao projeto, posso falar de quão cheios de alma são esses segredos e histórias, e também compartilhar vozes ativas.” Ele se refere ao áudio transmitido no final, no qual uma senhora canta uma música na caixa postal do celular da neta em sua última mensagem antes de morrer. É com essa riqueza de comoções que os participantes são convidados a compartilhar suas intimidades em alto e bom som após Warren discursar. Recentemente foi lançado o PostSecret Album, disponível no site, no qual se pode ouvir segredos contados durante os eventos.

Não raro, o fundador do site recebe mensagens de pessoas que conseguiram superar determinada situação depois de um segredo ter sido publicado. Em espaço reservado no site para alguns desses finais felizes, é possível ler esta gratidão: “Querido Frank, deixei meu namorado de um ano e meio por causa do cartão-postal que dizia ‘o temperamento dele é tão assustador que perdi todas as minhas opiniões’. Não havia me ocorrido o que estava acontecendo e foi preciso que um completo estranho escrevesse para me fazer perceber o que diabos estava acontecendo na minha vida. Não posso agradecer o bastante por deixar as coisas mais claras. Foi a coisa mais inteligente que fiz em muito tempo”.

Warren soube conviver tendo conhecimento do mais sombrio de cada um, mantido pelo que também há de mais cômico e espirituoso em várias das histórias. “Tive, de alguma maneira, a incrível oportunidade de ganhar a confiança de estranhos de todo o mundo para me confidenciarem seus engraçados, pensativos, sexuais, dolorosos e esperançosos segredos. Tem sido um grande privilégio.”

JÉSSICA FERREIRA É ALUNA DO CURSO ESTADO DE JORNALISMO 

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