Historiador avalia como as fábricas gigantes moldaram o mundo atual

'Mastodontes', de Joshua B. Freeman, mostra que a decadência do modelo clássico de indústria não a fez perder relevância

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Por Caio Sarack
Atualização:

Ao nos admirarmos diante do último e mais avançado dispositivo, pensamos estar imersos numa narrativa futurista. Nanotecnologia, avanços nas pesquisas sobre células, os investimentos em retardar a velhice e a morte constroem em nós uma lembrança das grandes indústrias e seus braços robóticos onipotentes que surgem, hoje, arcaicas Mas não só da eloquência dos dias e das rotinas vive o nosso juízo, mas de toda a evidência e pesquisa historiográficas.

'Paisagem Clássica' (1931), de Charles Sheeler Foto: National Gallery of Art

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O livro Mastodontes (editora Todavia), do historiador Joshua B. Freeman, reacende nossa consciência sobre as linhas e redes de produção contemporâneas a fim de, apoiadas no comentário e interpretação dos eventos de fins do século 18 ao século 20, descrever com clareza os reais contornos dessa indústria que se distancia de nosso dia a dia, mas não por isso perde sua relevância. O trabalho do autor está centrado nos “grandes monstros” que ocupavam os centros capitalistas desde a mais tenra idade da Revolução Industrial, de lá, então, Freeman nos aponta as marcas que esse modo de produzir deixou não só na cadeia de valor do Capitalismo moderno, mas na própria percepção do sujeito que está sendo construído e (de)formado por essas novas relações sociais. 

Para enfrentar esse recorte, o autor pinçou, em meio ao mundaréu de exemplos paradigmáticos e variados da industrialização e sua história, um modelo de fábrica específico. De certa forma, Freeman elege como que a grande caricatura da capacidade industrial: as fábricas mastodônticas, fábricas gigantes que por sua extensão e demandas (trabalhadores, consumidores e toda sorte de tipos sociais) transformavam seu entorno rápida e profundamente. A partir delas e seus mais exponenciais traços, o livro reconstrói a sua viabilização nas rotinas comerciais de meios do século 19 até o impulso produtivo das duas revoluções orientais, durante e depois, à União Soviética e à China. Esse recurso, no entanto, quer esquadrinhar os excessos e apontar os desdobramentos do processo industrial no mundo contemporâneo e suas transformações essenciais nas dinâmicas sociais. Vale a citação direta de sua conclusão: “Embora as fábricas gigantescas ainda sejam vistas como veículos para o lucro e para o desenvolvimento econômico nacional, é muito menos provável que sejam celebradas nos dias de hoje ou apresentadas como modelos para a sociedade em geral. (...) Antes, um comprador de uma máquina de costura Singer ou de um Ford Modelo T sabia exatamente onde eram feitos. Hoje, o comprador de um tênis, de uma geladeira ou até mesmo de um automóvel provavelmente não tem ideia do país em que foi fabricado, e muito menos em que fábrica.” (p. 318). 

O trecho desvela o papel social do trabalho agora rudimentar das majestosas e gigantes fábricas: o trabalho especializadíssimo das tecnologias da informação e da medicina micro ou nanotecnológica legam ao trabalho grosseiro (com grifo dos nossos tempos) seu lugar distante, afasta-o para que ele não contamine o espaço. Essa certa “vaidade” de um novo tempo em relação ao “tempo da fábrica” não explica suficientemente o cenário, antes é a atribuição de um valor a um sintoma que é próprio da arquitetura capitalista do mundo fabril: a automação dá suporte às mudanças nas fábricas mastodônticas ao mesmo tempo em que evidencia – de uma vez por todas – a falta de eficiência e o desperdício de dinheiro. O que fazer? Deixar executarem as tarefas os computadores e braços biônicos. A divisão internacional do trabalho, porém, faz sucumbir a utopia do livramento do trabalho – outro trecho pode nos indicar algo muito interessantes: “Na sua fábrica de smartphones em Kunshan, China, não muito longe de Xangai, a companhia investiu pesadamente em robôs, o que possibilitou a redução de empregados de 110 mil para 50 mil, ainda uma força de trabalho muito grande (...). Outras empresas recorreram a muitas fábricas de pequeno e médio porte em regiões de salários muito baixos, como Bangladesh, numa aparente volta ao passado, com jovens chegadas de aldeias rurais produzindo bens para gigantes globais como a WalMart e a H&M” (p.319).

Apesar dos diagnósticos sobre essa divisão do trabalho globalizado já terem sido previstos, revistos e reajustados com novos dados, o professor Joshua Freeman reafirma sua posição de historiador; sem um olhar prospectivo em sentido estrito, ele percebe na destruição criativa (ou criação destrutiva?) das gigantescas fábricas uma ode à ação interventora do espaço – ao encarar todas as oxidações do bronze, seus esverdeados mais profundos também nota que estes monumentos guardam consigo uma promessa de mudança.*CAIO SARACK É MESTRE EM FILOSOFIA E PROFESSOR DO INSTITUTO SIDARTA E DO COLÉGIO NOSSA SENHORA DO MORUMBI

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