Historiador Georges Minois examina a solidão em diversas épocas

Intelectual francês percorre a história do isolamento e desafia a ideia de pessoas como seres sociais

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Castigo para o homem comum, virtude para os seres incomuns, a solidão já foi estudada, entre outros, por intelectuais como os alemães Georg Simmel (1858-1918) e Norbert Elias (1897-1990) e o francês Pierre Bourdieu (1930-2002) – segundo a área de interesse dos três, convertendo o isolamento em objeto sociológico. Há seis anos, o historiador George Minois, 73, deu sua contribuição e publicou um livro, História da Solidão e dos Solitários, cuja tradução (de Maria das Graças de Souza) é lançada agora no Brasil pela Editora Unesp.

Narciso pintado por Caravaggio entre 1597 e 1599 Foto: Galleria Nazionale d'Arte Antica

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Ela chega num momento oportuno, em que 7 bilhões de almas no mundo correm o risco de se ver solitárias no meio da multidão – a solidão na sociedade da hipercomunicação, aliás, é tema do último capítulo do livro. Na obra, Minois passa pelo isolamento dos padres do deserto, dos reclusos e eremitas medievais, pela solidão humanista da Reforma, pelos solitários de Port-Royal, e pela solidão romanesca de Robinson Crusoé, além da autoexclusão dos celibatários românticos e dos grandes individualistas contemporâneos.

Minois, biógrafo de personalidades como Henrique 8º. e Galileu, já escreveu a história do inferno, do suicídio e do futuro, para ficar apenas em três temas que revelam a excentricidade de seus textos historiográficos. É o tipo de autor que se lê com o maior prazer, embora se possa discordar dele em algumas ocasiões ou mesmo se incomodar com seu eurocentrismo – ou seu chauvinismo francófilo, considerando a plêiade de seus personagens, de Charles 7º., o rei que confiou um exército a Joana D’Arc, ao moralista Le Rochefoucauld. A França acima de tudo. Enfim, como dizia o próprio Rochefoucauld, “se não tivéssemos defeitos, não sentiríamos tanto prazer em reconhecê-los nos outros”. Minois sabe disso, o que fica claro particularmente no sexto capítulo de seu livro, dedicado à análise do retiro e da espiritualidade no século 17 – na França, claro – ao tratar tanto da solidão forçada dos presos da Bastilha como do isolamento dos jansenistas e dos senhores de Port-Royal.

Minois é um erudito que escreve para todos, facilitando a vida de seus leitores. Parte da etimologia do termo latino ‘solitudo’ – mais aplicado a um lugar deserto, hostil, avesso à presença humana –, para concluir que ser solitário é ser expurgado da civilização. Estar apartado subentende um isolamento físico, mas também uma situação “anormal” para um ser que é um animal social, segundo a filosofia grega (Aristóteles), observa Minois. Da Bíblia, ele toma emprestado as primeiras letras do Antigo Testamento para lembrar que a solidão não é una, mas múltipla – costela por costela, não é certo que Adão tenha ficado menos solitário depois de Eva.

Avançando um pouco mais no tempo, ele elege o mito de Narciso para reforçar a ideia da solidão fundamental do ser ao tomar consciência de si mesmo. Seja como for, Minois reconhece que essa é uma interpretação livre que gera discordâncias, evocando as Metamorfoses de Ovídio e as Bucólicas de Virgílio.

O certo é que a poesia de Virgílio, repleta de pastores perdidos de amores impossíveis por outros rapazes, serve de ponto de partida para analisar a solidão de camponeses isolados que se reconhecem como excluídos sociais. Mas, lembra Minois, até Sêneca, que ele classifica de “único intelectual latino a refletir sobre a solidão”, foi obrigado a reconhecer que “isolados, seremos melhores”. Foi o que levou milhares de indivíduos ao deserto, antes da queda do mundo romano, um movimento do século 4 que perturbou a sociedade da época com o êxodo de adeptos do cristianismo. Para o historiador, não deixa de ser um paradoxo o fato de cristãos se precipitarem na solidão quando os pagãos fugiam dela. Padres do deserto como São Macário, por exemplo, atraídos pela aridez do deserto, são assediados por demônios como Jesus o foi. Quanto mais rezam, mais acossados pelo “demônio do meio dia” ficam, deprimidos, solitários e expostos ao diabo meridiano que tentou São Simeão, sentado em sua altíssima coluna de 18 metros.

O caso das mulheres sozinhas é tão interessante como o do asceta Simeão do deserto, que buscou na penitência a iluminação, ao viver longe dos homens (Buñuel fez um filme irônico sobre ele) . Infelizmente, Minois dedica a elas pouco espaço, analisando como a solidão da espera da Virgem Maria foi replicada de modo um tanto perverso na época de Boccaccio, quando famílias abastadas isolavam suas filhas para preservar sua pureza (santa Catarina edificou para si uma cela para viver em solidão). Prevalece, portanto, algo do citado chauvinismo na historiografia de Minois, que prefere falar da bem sucedida conciliação entre a vida cenobítica e a vida eremítica de homens como São Bruno, fundador da ordem dos cartuxos. Todos separados, mas unidos pela comunidade, parece ser para Minois a fórmula ideal de solidão. Isso até que as sombras do Renascimento – a peste, as guerras, as revoltas – deixassem a todos traumatizados, buscando no isolamento uma forma de salvação, tanto física como espiritual. Petrarca, garante o historiador, foi o precursor da moda pastoral, que marca o fim da Idade Média e anuncia a nova atmosfera da Renascença lírica.

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Minois celebra o mais solitário personagem de Shakespeare, Tímon de Atenas, ingênuo filantropo que se desilude com a humanidade e vai para os bosques em busca de paz e isolamento. O verdadeiro misantropo, observa o historiador, “é quase sempre um filantropo decepcionado”. Já o solitário autêntico, conclui o historiador, é aquele que compreendeu que os outros são como ele, “seres encerrados em sua consciência individual e irremediavelmente sós”. É na Reforma protestante que o espírito do individualismo prevalece. Como consequência inevitável, observa Minois, advém entre os protestantes “uma perda de coesão e um sentimento de isolamento maior do que entre os católicos”.

A Montaigne, que encarna o espírito da Renascença, Minois dedica uma análise inspirada sobre seu isolamento na modesta torre do castelo onde construiu sua biblioteca. Montaigne não é um misantropo, não é inimigo da agitação das cortes, como diz, mas uma espécie de Adão no paraíso terrestre quando está em sua biblioteca, a mesma felicidade que madame de Sevigné, uma solitária que ficou viúva aos 25 anos, experimenta ao se refugiar em seu castelo de Rochers, longe do insensato mundo da corte. Há, contudo, os que são solitários contra a vontade, como os prisioneiros e os intelectuais, sublinha Minois.

O século 18 não foi favorável à solidão, exemplifica. O Século das Luzes não é social, é sociável, escreve o historiador, um século que aprecia as decisões coletivas, as reuniões e as academias e despreza a solidão voluntáia, vista como uma doença, uma espécie de traição à sociedade – Diderot diz mesmo que a solidão “degrada a humanidade”. Mas Robinson Crusoé não é um dos “heróis’ desse Século das Luzes?, pergunta Minois. A grande lição do personagem de Defoe, conclui o historiador, é que a solidão não é natural ao homem, mas pode tornar-se natural para alguém que já passou pela civilização. Crusoé torna-se um “solitário equilibrado”.

Tal sorte não têm os românticos do século 19, que não suportam a solidão, recorrem ao suicídio e viram de Émile Durkheim. Minois acha que os protestantes se suicidam mais que os católicos. E associa o celibato a gênios artísticos que se matam, como Tchaikovski. Chegamos ao caso mais grave de solidão, o do professor de estética e filosofia Henri-Fréderic Amiel (1821-1881), autor do mais volumoso diário íntimo de que se tem notícia, 17 mil páginas manuscritas. Seu drama, analisa Minois, “é que ele tem consciência de só poder existir pelos outros”. Isso o paralisa, sua timidez o afasta da sociedade. Daí para Baudelaire, o mais radical solitário moderno, segundo o historiador, é um passo. Drogado, endividado, maldito, ele é o arauto dos tempos que vivemos, uma era de hedonismo exacerbado, voluntarismo e ignorância. A nova solidão, completa o autor, “se chama Comunicação”.

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