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Historiadora inglesa Lucy Delap revê a história do feminismo

Em entrevista ao 'Estadão', autora de 'Feminismos: Uma História Global' fala sobre o movimento, as polêmicas e os avanços do ativismo na sociedade

Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:

Feminismos: Uma História Global, da historiadora britânica Lucy Delap, em tradução de Isa Mara Lando e Laura Teixeira Motta, é um livro fundamental não só para feministas, mas para qualquer pessoa interessada em entender o que significa esse movimento plural. Delap percorre o Ocidente, passando algumas vezes pelo Brasil, e o Oriente: fala de moda, de canções, de objetos etc. que marcaram as ações feministas formando um grande patchwork, que talvez sirva de metáfora para descrever esse movimento, já que o trabalho com retalhos era executado coletivamente por mulheres nos Estados Unidos e Canadá, principalmente.  Seu livro, diz Delap, “se abre para uma história mais ampla, a história de transformações profundas que ocorreram na maneira como as mulheres entenderam e habitaram o próprio corpo e a própria vida. Nossa história olha para trás e para a frente a partir de 1886, abrangendo 250 anos de tentativas de politizar as injustiças de gênero. Todas e todos que desafiam as desigualdades enfrentadas pelas mulheres encararam o problema de maneiras profundamente determinadas por seu próprio momento histórico”. 

A historiadora e professora universitária britânica Lucy Delap, uma das estudiosas mais gabaritadas sobre feminismo Foto: Graham Copekoga/Companhia das Letras

O percurso traçado por Delap destaca a diversidade de ideias e anseios do feminismo, ou feminismos, como se lê no título do livro. Aliás, o termo, cunhado no final do século 19 e adotado globalmente no início do século 20, segue sendo controverso; alguns preferem outras palavras para se referir ao movimento, por achá-lo reducionista. Na verdade, lembra a historiadora, “o próprio termo ‘feminista’ foi usado no final do século 19 para substituir a ideia de ‘movimento das mulheres’ por uma identidade mais ampla, que fosse aberta a ambos os sexos”. Hoje, o termo abrange a luta para “erradicar os males relativos ao gênero”, que, como afirma Delap é “entendido como a organização cultural e social do sexo”.  Cabe lembrar a esse respeito que em algumas sociedades africanas a hierarquia e o agrupamento das faixas etárias eram mais importantes do que o gênero, “o que permitiu que as mulheres adotassem papéis transgressivos ou poderosos, tais como a ‘mulher-marido’. Essa ideia de variabilidade é realmente importante porque torna a mudança possível — ou seja, a diferença entre os sexos não é um dado e pode assumir formas diversas. Portanto, está aberta a desafios e mutações”, conclui Delap.

Cartaz feminista de Betty Thompkins Foto: Art Basel Miami

O movimento feminista tem também uma história de discórdia e violência, a qual traz à tona aspectos que incomodam as feministas ainda hoje. Mas, enfatiza Delap, uma base histórica é necessária para o ativismo atual. É importante saber, por exemplo, que “as mulheres negras, as da classe trabalhadora, as lésbicas, trans e bissexuais, as com deficiência, as não ocidentais e não cristãs muitas vezes foram excluídas daquilo que a teórica Chela Sandoval chamou de ‘feminismo hegemônico’”, o qual, apesar das origens cosmopolitas, acabou muitas vezes se associando a um modelo ocidental de mulher emancipada. Nesse sentido, a “voz de pessoas com origens ou objetivos diferentes nem sempre foi ouvida, e as campanhas feministas nem sempre atenderam às necessidades dessas pessoas”. Não foram só as mulheres que se inspiraram nas ideias de igualdade, de “justiça de gênero”. Aliás, segundo bell hooks, citada pela historiadora, “as mulheres podem participar da política de dominação, e participam, tanto como perpetradoras quanto como vítimas”. 

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie Foto: George Osodi/AP

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Ao longo desse livro, Lucy Delap destaca também os homens que trabalharam para promover os direitos da mulher, uma vez que percebiam que os objetivos feministas eram benéficos também para eles. Contudo, a adesão dos homens ao movimento é polêmica, muitas feministas acreditam que eles não devam fazer parte do movimento; outras, como Chimamanda Ngozi Adichie, acreditam que todos podem ou devem ser feministas; afinal, feminista é “uma pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos”, conforme ela encontrou no dicionário.Feminismos: Uma História Global lembra antes de tudo que, como afirma a filósofa feminista Iris Marion Young, citada por Delap: “Precisamos acordar para o desafio de compreender as diferenças, em vez de continuar sonhando com um sonho em comum”. Compreender as diferenças é essencial para o diálogo; impor nossos sonhos a outras culturas e realidades só enfraquece o movimento e abre espaço para retrocessos como estamos tendo em muitos países ao redor do mundo que elegeram líderes expressamente antifeministas, como Jair Bolsonaro, que, entre tantos disparates proferidos, afirmou que conceber uma filha é uma “fraquejada”. Nossos direitos não estão assegurados e por qualquer descuido corremos o risco de retroceder algumas décadas.

No Brasil, a coleção Feminismos Plurais, publicada pela editora Jandaíra, em coordenação de Djamila Ribeiro, traz uma grande contribuição ao tema com títulos como, entre outros, Colorismo, de Alessandra Devulsky e Transfeminismo, de Letícia Nascimento. 

Em Feminismos: uma história global, “fazer feminismo” não é uma missão concluída, é uma jornada. Tenho a impressão, contudo, de que em algum momento, nessas últimas décadas, muitas/os de nós abandonamos essa jornada, acreditando, talvez, que os direitos duramente conquistados estavam assegurados. Um provável abandono da jornada teria contribuído para a eleição de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, entre outros líderes antifeministas que vêm atacando os nossos direitos conquistados? O que explica este retrocesso?

Sempre existiu um desejo de que as políticas libertadoras fossem concluídas, mas na verdade o feminismo é uma utopia e uma agenda criativa que nunca estão concluídas, mas é sempre uma jornada. Estamos profundamente empenhadas em uma ideia de progresso, uma marcha em frente na qual a passagem do tempo proporciona vidas melhores, mais respeito pelas mulheres, gentileza e educação entre os homens, um movimento menos dividido entre raças, sexualidade e classe. Mas, se há progresso, ele é o resultado de construção de coligações, de alianças e da infraestrutura política/criativa de que nós precisamos para vencer as batalhas feministas. E isso talvez esteja ficando desgastado em razão de um sentimento entre algumas mulheres de que podemos dar como asseguradas as conquistas feministas. Uma nova geração de feministas nos anos 1990 alegava que a igualdade das mulheres se tornou, como o flúor, tão somente algo na água à nossa volta. Mas é um meio ambiente que precisa continuar a ser refeito. Não acredito que a complacência das mulheres levou à eleição de Trump e de Bolsonaro – acho que foi a polarização do século 21 e o discurso de ódio impulsionados pelas mídias sociais turbinadas, que têm como alvo as feministas e os direitos das mulheres. O feminismo é um alvo politizado para eles, fácil de ridicularizar e de transformar em um espaço de antagonismo sexual. 

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O então presidente americano, Donald Trump, em janeiro de 2021. Foto: MANDEL NGAN / AFP (arquivo)

Lê-se no seu livro que reivindicar e criar espaços são atividades feministas essenciais, “embora os resultados não estejam sempre livres de ambiguidades e de policiamento [...]”. 

Sempre que assisto a programas sobre renovação de casas no Canadá e nos Estados Unidos, especificamente “Irmãos à obra” (“Property Brothers”) ou “Ame-a ou deixe-a” (“Love it or List it”), chamam a minha atenção dois cômodos sempre muito requisitados pelas famílias: a cozinha, que deve estar integrada à sala de estar para que as mães, enquanto cozinham, possam ficar de olho nas crianças, e o espaço masculino (man cave) totalmente independentes. Aliás, a maioria das mulheres nesses programas são donas de casa (stay-at-home moms).

Como você vê esses espaços tais como são planejados ainda hoje?

Os espaços na casa são muito poderosos e nos ajudam a ver a simbologia de gênero do nosso meio e o poder diferenciado que homens e mulheres têm para comandar o espaço. A man-cave (caverna do homem) era uma das características das casas do século XIX também – o escritório e a possibilidade de os homens terem quietude e autorizar quem podia entrar eram características da classe média emergente. As mulheres de classe média podem reivindicar um boudoir, mas não há hoje um real equivalente a isso. Em muitas sociedades, se você faz uma investigação do espaço físico e dos direitos de propriedade, verifica que há um mundo de gênero muito desigual no qual mulheres são menos capazes de ter ou de transmitir propriedade. Mas vamos nos consolar com o fato de que a man-cave não é apenas um lugar de privilégio – ele também priva o homem das fontes de conforto, amor e energia vital que as mulheres encontram em seus espaços compartilhados com as crianças, com os vizinhos e com os familiares; e da interação delas com a comida e com os jardins, com os campos e com as redes de água, com as ruas e com os percursos para a escola. 

A cineasta e artista plástica Agnès Varda Foto: Imovision

As mulheres vêm dando uma grande contribuição ao cinema desde sempre, não só como atrizes, mas como diretoras, roteiristas etc. Algumas são experts em retratar mulheres, como Agnès Varda; mas há homens que dedicaram muitos de seus filmes ao universo feminino, como Ingmar Bergman e Pedro Almodóvar, por exemplo. Como você vê as mulheres retratadas por esses diretores, precisamente? 

Há um universo de filmes feministas brilhantes que, nas palavras de Stuart Hall, “nos convida a pensar sobre política em imagens”.

Okja

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, feito na Coreia do Sul, ao celebrar o carinho e o amor de uma menina que salva seu porco de estimação, chama a atenção para a necessidade de unir os insights feministas com a consciência ambiental e de pensar sobre como nosso relacionamento com os animais pode fazer parte de uma política feminista. 

Como você vê o papel da tradução no movimento feminista? Você aborda o movimento feminista em vários países, inclusive no Brasil; você chegou a essas informações por meio de traduções?

Eu li a maioria dos textos em tradução – e às vezes fica claro que a linguagem de diferentes escritoras feministas não consegue ser facilmente mapeada em uma linguagem diferente. De fato, desafiar a estrutura da língua tem sido um projeto feminista importante. Algumas línguas têm o gênero interconectado nelas, enquanto outras estabelecem o gênero através dos pronomes ou da ordem da palavra. E algumas línguas não têm nenhum elemento genderizado forte e usam outros caminhos para dividir o mundo social, como a idade. Isso nos lembra que o universo linguístico é um dos meios mais poderosos em que as ideias corriqueiras de gênero são estabelecidas; e algumas feministas, tais como Hélène Cixous, desejaram que as mulheres acessassem esses universos que desafiam a linguagem patriarcal, por intermédio da “écriture féminine” experimental. Acredito, no entanto, que é mais importante ser capaz de acessar múltiplos universos que vão além da linguagem – música e dança, por exemplo, que podem também “traduzir” nossas políticas em novos registros. 

Um dos capítulos de seu livro fala dos sonhos das mulheres, que mudam ao longo do tempo e, é claro, que são diferentes em diferentes países. Neste momento, qual é o seu sonho? 

Eu sonho que as mulheres possam ter controle dos esforços mundiais para reequilibrar nosso meio ambiente e criar um novo equilíbrio pós-carbono com a natureza. As mulheres estão na linha de frente do debate sobre a extinção climática, e se elas forem incluídas nas tomadas de decisões, a evidência sugere que essa emergência seria tratada imediatamente com ação concreta efetiva e mudança, não apenas com blá blá blá. 

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