'Hoje a gente vive em um vale-tudo', diz crítico sobre a arte contemporânea

Livro de Frederico Morais tenta responder o que é a arte por meio de 801 frases de Sócrates a Da Vinci

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Por André Cáceres
Atualização:

O imperador chinês Li Su Hsun não conseguia dormir. A culpa era do artista que decorava seus aposentos. “Suas cascatas pintadas são muito barulhentas”, acusou o monarca. Essa anedota é contada pelo crítico, curador e historiador da arte Frederico Morais em Arte É o que Eu e Você Chamamos Arte, publicado em 1998 e agora com nova edição pela Bazar do Tempo. O trabalho minucioso reúne 801 definições sobre a arte de figuras que vão de Sócrates, São Tomás de Aquino e Leonardo da Vinci aos contemporâneos, organizado por temas – beleza, filosofia, política, natureza, religião, consciência ou inconsciência. Spoiler: se o leitor espera compreender o que é arte, vai acabar como Mário de Andrade, que iniciava suas palestras sobre o assunto confessando: “Eu não sei o que é belo e nem sei o que é arte.”

O crítico de arte Frederico Morais Foto: Ana Cecilia Impellizieri Martins/Bazar do Tempo

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Com centenas de definições conflitantes acerca de algo tão subjetivo, é impossível se chegar a um consenso. Morais, aos 82 anos, opta por reunir ideias que se contrapõem. O crítico alemão Konrad Fiedler, por exemplo, diz que “o tema de um quadro é completamente secundário”, e o artista colombiano Fernando Botero, que “os temas são um pretexto para a pintura”; mas o historiador alemão Udo Kultermann crê que “o que é pintado ou esculpido tem tanta importância quanto a maneira de pintar ou esculpir”. Já o intelectual brasileiro Sérgio Milliet observou que nenhuma escola aboliu os temas das obras, pois “o mundo exterior existe e o assunto, embora mascarado, também”.

Mas, afinal, o que é arte? O holandês Jan Dibbets utiliza a tautologia “A arte é a arte” para resumir a questão. O polonês Piotr Kowalski defendia que “a arte é um conceito estatístico. Se há gente suficiente que decide que uma coisa é arte, então é arte.” Já o francês Ben Vautier diz: “Tudo é arte. Nada é arte.” Encontrar uma definição cartesiana e abrangente parece uma tarefa de Sísifo. “É preciso retornar a uma concepção menos esotérica da arte”, advertia Sérgio Milliet. 

Talvez essa fórmula não exista simplesmente porque a ideia de belo seja subjetiva. “O significado histórico do conceito de beleza é muito limitado”, assinalou o crítico inglês Herbert Read. “Vivemos ainda à sombra da tradição renascentista, e para nós a noção do belo anda inevitavelmente ligada à idealização de um tipo humano concebido por um povo antigo num país longínquo, longe das condições reais de nossa vida cotidiana.” 

Se a busca por uma definição precisa é infrutífera, o livro nos conduz por acepções mais lúdicas ou pessoais dos artistas. “Não compreenderão nunca o que é a pintura”, concluiu Van Gogh. “Eles não concebem que a pequena figura de um camponês, uns sulcos de terra lavrada, um reduzido espaço de areia, de mar ou céu, sejam motivos sérios e sumamente difíceis e tão belos que realmente vale a pena alguém consagrar sua vida a reproduzir a poesia que encerram.” Picasso arriscou: “A arte é uma mentira que nos faz compreender a verdade, pelo menos a verdade que podemos compreender.” Monet admitiu que “amaria pintar como o pássaro canta”. Iberê Camargo confessou: “Eu pinto porque a vida dói.”

Mesmo tantas mentes brilhantes reunidas – Susan Sontag, Mário Pedrosa, John Berger, Marguerite Yourcenar, Montaigne ou Umberto Eco – conseguem apenas tatear o real sentido de arte, arranhar sua superfície. Mas Frederico relembra também frases de pichações em muros e da sabedoria popular. Um provérbio chinês diz: “À medida que desenhamos uma árvore, devemos sentir que ela cresce.” É por aí que se começa a compreender como as cachoeiras de um pintor atrapalham o sono do imperador. Sem meias palavras, quem arremata é Amilcar de Castro: “Não existe arte a favor. O artista é sempre contra.”

Por telefone, Frederico Morais respondeu às seguintes perguntas do Aliás:

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O que mudou na arte desde a primeira edição do livro, em 1998? Eu acho que a arte não muda e está sempre mudando. A arte basicamente é a mesma o tempo todo. E toda arte no fundo é moderna – a arte pré-histórica era moderna para sua época. Hoje há um acréscimo de interpretações, mais autores estudando, mais artistas, e a circulação de arte é muito maior. Mas o que mudou, de certa maneira, foram os suportes, que hoje não se restringem à pintura, ao mural. A escultura não é mais aquela forma sólida de metal, pedra, madeira. Hoje está tudo muito aberto e todo material é material de arte. Hoje a gente vive numa espécie de vale-tudo. Mas é claro que o vale-tudo tem que ter um sentido. 

A popularização da internet influenciou o mundo artístico desde então? O que mudou é a velocidade. É claro que há uma influência, mas eu não acho que a internet ou esses novos meios de comunicação mudaram fundamentalmente o sentido da arte. Aliás, falar em “sentido” também não é muito correto, porque não há um sentido único para a arte. Basicamente a arte é a mesma, você pode usar o mesmo instrumental para falar da arte contemporânea, medieval… Muda o contexto, a cidade, mas o papel da arte é basicamente o mesmo. Talvez hoje exista um lado contestatório mais evidente, mas pode ser porque a gente não perceba em certos murais renascentistas esse lado contestatório, alguma crítica que a gente não entenda.

Nos últimos anos, vemos muitas obras batendo recordes de preços. A quê o senhor atribui essa aproximação da arte moderna com o mercado? Isso influencia o fazer artístico?  Até um certo momento, a arte estava presa à parede. O problema começa quando o mural cede espaço para a pintura emoldurada, de cavalete, que pode ser movida facilmente. Você não pode deslocar um mural, mas pode deslocar, enrolar, embalar dois ou três quadros. E o mercado da arte começa por aí, no período dos Médici, de banqueiros que começam a financiar o trabalho dos artistas com o dinheiro que estava circulando por meio dos banqueiros. Então passou a ser um investimento. E o artista começa a ganhar um estatuto forte na sociedade. O que é preciso distinguir é que, com frequência, a opinião do crítico e a do marchand são conflitantes. O crítico de arte vê a pintura pelo seu lado subjacente, aquilo que está, digamos, escondido na pintura, um valor interno, intelectual. Já o galerista valoriza o quadro em si e a assinatura. Mas nem sempre os artistas mais badalados são os mais importantes.

No livro, há frases sobre arte feita com computador desde os anos 1970. Hoje vemos notícias sobre inteligências artificiais produzindo arte. Qual é a opinião do senhor sobre isso? Eu não acho nada impossível. A partir do momento em que surgiram os computadores, a chamada arteônica, arte eletrônica, isso muda a situação, mas nem tanto. Muda o modo de circulação da obra. Para você ver um mural, você tem que ir ao edifício, à igreja. Para ver um quadro, você tem que ir ao museu, à galeria ou pode guardar em casa. Mas com a arte eletrônica, você vê a obra de arte em qualquer lugar em que esteja. Eu não sou entusiasta de todas essas inovações. Discutia muito com o Waldemar Cordeiro, que é um dos fundadores da arteônica no Brasil. Todos eles, de modo geral, vieram de uma arte minimalista. Uma arte tendendo à geometria, à linha precisa, às cores puras. Por essa linha é que vai se surgir um tipo de arte que usa as novas tecnologias. 

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Várias definições no livro são contraditórias entre si e foram até contrapostas, uma logo após a outra. O senhor colocou frases com as quais não concorda na hora de organizar a obra? Sem dúvida. O que eu fiz é um levantamento, uma coisa quase estatística. O livro não transmite necessariamente a minha posição. Apesar de que um crítico, seja no seu trabalho como jornalista, como autor de livros, catálogos, ou como curador, não pode ter uma ideia única. Não há nenhuma definição capaz de abranger todos os aspectos da arte, tanto que existem muitas maneiras de entrar em uma obra. 

Como foi o processo de montar o livro, coletar todas essas frases? Sempre fui um cara que junta papéis. Minha casa é uma espécie de arquivo. Tudo aquilo que me parece interessante eu guardo, até porque eu dei aula por muito tempo e era preciso ter um certo material. Não me lembro o dia em que eu guardei e anotei a primeira frase. Mas eu lia os livros, fazia fichas, às vezes na máquina Olivetti e, em um certo momento, pensei em fazer um uso disso. Sem intenção de ditar nenhuma regra ou comportamento. Seguramente o leitor vai encontrar alguma frase que de alguma maneira já estava em sua cabeça e vai descobrir outras das quais discorda. 

Depois de reunir tantas definições, é necessário perguntar: o que é arte? Aí é que está. Arte é arte (risos). Há uma frase, que está no livro, sobre alguém que pergunta ao Waltércio Caldas “Isto é arte?”, e ele responde, “Arte é isto”. Porque realmente não tem mais uma regra. Mesmo nas escolas de belas-artes, que têm um peso acadêmico, da história, da tradição, já não dá mais para se reduzir a uma definição, porque essa definição está sempre sendo estourada, explodida por um trabalho novo que não consegue se encaixar. Esse que é o lado bom. Arte não acaba. Você pode imaginar nosso mundo sem arte? Pode imaginar um país em que os dirigentes não considerem arte como um instrumento vital para o crescimento da vida social, o enriquecimento cultural? O ser humano não pode viver sem arte.

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