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Hora de descruzar os braços

Só new deal à brasileira, com frentes de trabalho, nos tira da crise, diz especialista em emprego

Por Ivan Marsiglia
Atualização:

. "O Brasil não precisa de ministro do Trabalho, precisa é de um ministro do Emprego", disse o economista Walter Barelli pouco depois de assumir a pasta no governo Itamar Franco, de 1992 a 1994. Quem levou o convite foi Fernando Henrique Cardoso, afirmando que a indicação tinha sido feita por Luiz Inácio Lula da Silva. Nos primeiros anos do governo de salvação nacional pós-impeachment de Fernando Collor ainda eram cordiais as relações entre os dois presidentes - e forças políticas - que sucederiam a Itamar. Com ambos, Barelli colaborou em diferentes momentos. Em outros, quando sua obsessão pela geração de empregos era questionada, também soube divergir.   Barelli: 'No Brasil, os bancos nunca tiveram vocação para emprestar' Na semana em que a General Motors do Brasil demitiu 744 funcionários temporários de sua fábrica em São José dos Campos e rumores sobre os números do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), a serem divulgados amanhã, davam conta de que cerca de 600 mil postos de trabalho desapareceram no Brasil em dezembro, o Aliás foi ouvir este especialista em emprego. Diretor do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) de 1967 a 1990, secretário do Emprego e Relações do Trabalho do Estado de São Paulo nos governos Covas e Alckmin de 1995 a 2002 e deputado federal pelo PSDB paulista de 2003 a 2007, Barelli falou sobre as saídas para a crise que assombra o trabalhador brasileiro. Aos 70 anos, professor aposentado da Unicamp, ele acaba de ser convidado para integrar o conselho do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas), ao lado de colegas como Luiz Gonzaga Belluzzo, Maria da Conceição Tavares e Delfim Netto, e diz que a saída é uma só: pôr mãos à obra em um grande new deal nacional. As demissões na GM e os números do Caged são sinais de que a crise vai atingir duramente o emprego? Se vai atingir duramente é prematuro dizer. Mas ela já começou com a extensão das férias coletivas das fábricas. A primeira demissão grande foi da Vale, 1.300 funcionários. Agora foi a GM. Mas há o caso sui generis da Renault, no Paraná: foi feito um acordo com o sindicato de suspensão do contrato de trabalho. Os funcionários ganham o seguro-desemprego e a empresa completa o salário líquido que eles tinham. Se ganhavam R$ 680, o seguro dá R$ 400 e a Renault, R$ 280. Parece-me o melhor arranjo feito - e o primeiro em que entra sindicato nessa história. Mas e a reunião da Fiesp com a Força Sindical e a CGT para negociar um ?acordo guarda-chuva? que reduza benefícios trabalhistas em troca de suspensão de demissões? Na questão trabalhista, quanto mais próximos do trabalhador os acordos são fechados, melhor. Porque ele tem condições de fiscalizar. De outra forma, alguém que pretensamente o representa assina por ele. É por isso que acordos feitos diretamente entre sindicatos e patrões são mais efetivos. Essa reunião que você menciona ainda está mal-explicada. Até porque não existe acordo que possa ser aplicado linearmente a empresas tão distintas. O "guarda-chuva" só faz sentido se servir de orientação geral para os outros acordos. Por que demissões tão rápidas em um setor que vinha batendo recordes de vendas de veículos? No caso específico das montadoras, a crise veio pelo crédito. O modelo, que funcionou bem, oferecia 70, 90 meses ao consumidor para pagar o carro. As montadoras tinham até as próprias financeiras, Banco GM, Banco Ford... Com a restrição de crédito, elas fecharam suas carteiras de empréstimos. É de se supor também que, com a situação deteriorada das matrizes americanas, as subsidiárias brasileiras sejam usadas para fazer caixa. E essa mesma restrição ao crédito foi o que afetou a construção civil, outro setor que vinha tendo uma expansão histórica. Na construção civil, estávamos começando a ter crédito imobiliário a rodo. Agora, de uma hora para outra, os bancos pararam de emprestar. Inclusive porque banco no Brasil nunca teve vocação para isso: é caixa de aplicações, para ganhar no dinheiro seguro. Estavam começando a se interessar, após o crédito consignado e a expansão dos financiamentos da Caixa. Mas cessou. Tanto que o BC liberou o depósito compulsório e mesmo assim o crédito não fluiu. Os bancos vão precisar de um bom marketing nesta crise, porque correm o risco de serem execrados. A função social deles está escondida. Como o governo pode reagir à quebra de confiança generalizada? "Na muda, inhambu não pia", como diz o ditado. Empresário não investe em período de incerteza. E o consumidor de classe média, que lê jornais, também para de comprar. O presidente Lula vem tentando reverter isso. É "marolinha", é "comprem que o Brasil vai para a frente..." Mas a coisa não se resolve só no discurso, no marketing: tem que colocar dinheiro na mão das pessoas. De que maneira? O próprio (presidente eleito americano Barack) Obama deu a pista. Precisamos de um new deal, como Roosevelt fez na década de 30. É momento de se pegar todas as economias de governo - não precisa nem mexer nas reservas, senão os economistas me trucidam - e fazer um grande plano de obras para resolver os gargalos da economia nacional. Recuperar estradas, ferrovias, portos, fazer o que os governos estaduais estão fazendo. Só isso terá efeito imediato. A proposta dos empresários de se reduzir imposto e juros, que são de fato altos, não provoca mudanças em menos de oito, dez meses. Então faz sentido quando o presidente Lula fala em ?inventar novas obras importantes?? Sim. O PAC precisa ter PAC 2, 3 e 4, porque é pequeno para a crise que vem aí. Temos de seguir o modelo keynesiano: aumentar a demanda efetiva. Outra ponto: tenho lido que o ministro Patrus Ananias está brigando para que não haja contingenciamento de recursos do Bolsa-Família. Não pode! É preciso continuar e, se for o caso, aumentar o número de famílias beneficiadas. O Bolsa-Família é um bom instrumento contra a crise? Por mais que eu tenha minhas críticas ao programa, ele é anticíclico neste momento. Tornou-se absolutamente necessário. Veja que o próprio Obama afirmou que vai dar US$ 1.000 em redução de impostos para o contribuinte. Só precisa ver se isso se transforma em consumo - porque estou pensando em emprego. Um cidadão americano de classe média pode receber o dinheiro e guardar. No Brasil não corremos esse risco: como o beneficiário é muito pobre, todo o valor colocado se transforma em consumo. Mas o melhor mesmo seria transformar o Bolsa-Família em algo semelhante às frentes de trabalho feitas em São Paulo durante o governo Mário Covas. Como funcionavam essas frentes? Quando Covas saiu da primeira operação de câncer, ligou para mim e disse: "Barelli, reúna quem você precisar, consulte todo o mundo, quero saber o que gera emprego de imediato". Ele estava preocupado com a maxidesvalorização do câmbio que FHC tinha anunciado naquele ano, e certamente iria resultar em desemprego. Bolamos um sistema em que o indivíduo recebia de cara uma cesta básica para aguentar o trabalho, e oferecíamos também almoço. Ele trabalhava cinco dias da semana na frente e em outro recebia formação profissional na área que desejasse. Obras como o Projeto Pomar, que transformou a Marginal do Rio Pinheiros em jardim, foram feitas pelas frentes. E a desoneração da folha de pagamentos? É um caminho? Sim. A experiência bem-sucedida foi o Simples. Com ela, o micro e pequeno empresários puderam registrar seus funcionários sem ser onerados. Mesmo na folha de pagamento das grandes empresas há penduricalhos que poderiam ser transferidos. A contribuição para o Incra é um deles. O salário-educação, outro. A forma de financiar a Previdência também deveria mudar. O senhor está falando de sua proposta de transferir a contribuição previdenciária para o Imposto Sobre Valor Agregado (IVA)? Essa é a saída. Uma empresa com faturamento elevado, como a Petrobrás, paga menos de 1% à Previdência. As montadoras também. Já setores que empregam muito, como o de vestuário ou autopeças, pagam mais à Previdência em proporção ao seu faturamento. É preciso que as empresas contribuam proporcionalmente ao que ganham, não ao número de empregados que têm. O que mudou no papel dos sindicatos, que o senhor conheceu no auge, nos anos 80? Os anos 80 foram a década de ouro para os sindicatos. Naquele momento, eles pautavam a agenda nacional: na luta pela redemocratização, nas batalhas da Constituinte, na negociação nas fábricas. De 1988 até 2003, o País atravessou uma época de baixo crescimento. E o movimento sindical não sabe conviver com momentos de desemprego, ele se enfraquece. Mais recentemente, com a volta do crescimento econômico, eles recuperaram alguma atuação e foram importantes na definição da política de aumento real do salário mínimo. Por outro lado, reduziram sua influência por estarem atrelados demais à Presidência da República. As centrais sindicais, uma inovação no País por não dependerem do governo, passaram a receber contribuição sindical. E os servidores públicos estaduais, que também tinham entidades fortes, como o sindicato dos policiais, dos escriturários, dos agentes penitenciários, a partir deste ano também recolherão um dia de salário do servidor. Essa foi a forma que Getúlio Vargas inventou para que os sindicatos aderissem a sua política trabalhista. E acaba com a sua autonomia. Em seu livro O Futuro do Emprego o senhor afirma que novas tecnologias quebraram paradigmas e hoje os investimentos acabam provocando corte - e não aumento - de postos de trabalho. A crise pode acelerar esse processo? Sim. Todas essas empresas que estão demitindo já estão pensando em novas formas de produzir, com menos gente e mais produtividade. E os empregados que ficarem dificilmente ganharão mais por isso. Teóricos de diferentes vertentes preconizam o fim da era do trabalho. Para o sociólogo italiano Domenico De Masi, autor de O Ócio Criativo, está a caminho uma era do lazer, com valorização do tempo livre e repartição da riqueza. Para o filósofo alemão Robert Kurz, que escreveu o Manifesto contra o Trabalho, a transição será apocalíptica, com exclusão social e desemprego em massa. Que futuro o senhor imagina? A crise é dantesca quando a gente olha para o trabalhador. Mas vai acelerar as imensas mudanças que já estão acontecendo. Hoje na Europa ninguém começa a trabalhar antes dos 25 anos. Até entre as classes menos favorecidas no Brasil consolida-se a ideia de que é melhor estudar mais e entrar no mercado depois. Isso é relevante em termos de diminuir o número de pessoas que demandam trabalho. Outra mudança: crises anteriores mostraram que não se pode dispensar a galinha dos ovos de ouro. Se a empresa manda embora um trabalhador treinado, estará sacrificando o lucro dali a um ano, quando a crise passar. Porque ele não volta mais para lá. Então, já começa a haver um pouco de juízo na cabeça de quem despede. Sei de um caso, que ocorreu na década de 60, em que uma empresa demitiu um único homem, que tinha só o quarto ano primário, e depois foi obrigada a substituí-lo por uma equipe inteira de engenheiros. Mudanças podem vir para o bem ou para o mal... Na área dos recursos humanos já se fala de uma geração Y, em oposição à X. A Y é nascida por volta de 1975, com 30 e poucos anos, sabe tudo de máquinas, executa tarefas ao mesmo tempo, é criativa. A X é composta de gente mais tradicional, dessa que constrói sindicatos e quer seguir carreira na mesma empresa. Um indivíduo Y gosta de reconhecimento profissional, mas não abre mão de sua vida: se um filho fica doente ou ele decide que deve fazer um curso no exterior, deixa a empresa sem o menor receio. Eles trabalham melhor com projetos, por jobs. Isso está mudando a fábrica, o escritório, a convivência no trabalho. Neste momento, já não bastam nem os modelos de contrato coletivo surgidos na década de 40, com claras vantagens sobre legislações que dependem do governo, como a CLT. Será necessária uma nova forma de contrato, que conjugue o individual com o coletivo, a vida de trabalho com o lazer, o tempo livre e os amigos. Mas isso é tarefa da geração Y. Não são os velhos que vão ensinar.

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