HQ de Paolo Bacilieri conta a história das palavras cruzadas nos jornais italianos e do mundo

Passatempo que ressurgiu com força total na pandemia ganha história em quadrinhos 

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Por Matheus Lopes Quirino
Atualização:

Zeno Porno é um típico personagem de Nouvelle Vague. Um jovem quadrinista que também escreve roteiros, ele vaga por Milão, sua cidade natal, sorvendo gelattos de pistache e o charme da capital mundial da Moda. Numa dessas andanças, Zeno se depara com uma figura mitológica, o professor Pippo Quester, intelectual italiano de renome, autor das obras preferidas do aspirante, como O Detetive Distraído. Casmurro de início, não demora para o professor amolecer e, conversador, puxar papo com o jovem sobre sua paixão: as palavras cruzadas. 

'FUN', HQ dePaolo Bacilieri Foto: Editora Veneta

Quester, com tiradas inteligentes, encarna uma persona digna de filmes de Truffaut ou Godard, proferindo, a doses homeopáticas, pequenas perspectivas sobre a vida que podem soar meras provocações, mas têm estilo. Logo de cara, por exemplo, quando Zeno se refere às palavras cruzadas como algo infantil, Quester rebate com um sorriso maroto. E quando pergunta com que o moço trabalha, escuta “Faço quadrinhos”, com ironia ele crava: “Que ótimo”. Quester é um símbolo de Milão, segundo Zeno, e a partir do primeiro café se cria uma relação de mestre e pupilo.  Aos 80, Pippo Quester está escrevendo um livro sobre a história das palavras cruzadas. A personagem de Paolo Bacilieri recolhe fragmentos de episódios reais e monta a história a partir do nascimento do primeiro jogo, publicado na véspera do natal de 1913 no FUN, suplemento dominical do jornal New York World. O word-cross puzzle (que depois ganhou outro título) foi um experimento do autodidata Arthur Wynne, que aos 42 anos largou a engenharia para se dedicar inteiramente ao seu jogo. Sucesso instantâneo.  Por anos, o jogo era exclusividade do New York Word. À época, exigia-se uma tecnologia na tipografia para que se pudesse ousar nas páginas um diário. Não podia haver erro de impressão ou imprecisão. O jogo era meticulosamente montado em um caderno quadriculado e descia para o tipógrafo com anotações feitas à mão. Considerada excentricidade, no primeiro momento, a palavra cruzada se tornou carro chefe daquele jornal.  Personagens icônicos são relembradas no livro, como Margaret Farrar, jornalista que foi a primeira editora das palavras cruzadas mais famosas do mundo, as do jornal The New York Times. Considerada “Dama das Palavras cruzadas!”, Farrar foi assistente de Wynne no NYW e aprendeu direto da fonte. Tendo superado o mestre, depois foi trabalhar no NYT, e em 1924 lançou a primeira antologia de palavras cruzadas pela Plaza Publishing Company, que viraria logo depois a influente editora Simon & Schuster. Como aposta, os sócios decidiram publicar o livro como barômetro para a editora. Foi um sucesso. O The Cross Word Puzzle Book, lançado em abril daquele ano, amontoou a correspondência da portinha que era a embrionária Simon & Schuster e garantiu capital para a empresa se solidificar.  Leitura favorita entre personalidades da época, como F. Scott Fitzgerald, as palavras cruzadas começaram a ser republicadas em outros jornais. E a função de editor do passatempo entrou para a folha de pagamento dos jornais. Levada à sério, reuniam-se na redação cabeças que bolavam os mais mirabolantes esquemas do jogo. No New York Times, por exemplo, ao longo da semana o nível de dificuldade aumentava, para no domingo ser o mais desafiador passatempo.  O próprio Fitzgerald admitiu, “[o jogo das palavras cruzadas] tornou-se uma neurose em expansão, cujo vago sintoma, como o bater nervoso de um pé, a era a popularidade das palavras cruzadas”. No ano seguinte, em 1925, as palavras cruzadas se proliferaram por todo mundo. Curiosa a enciclopédica história das palavras cruzadas, Bacilieri ilustra episódios marcantes da história moderna, como no ano de 1944, quando o ex-futebolista Leonard Dawe foi interrogado acerca de suas palavras cruzadas publicadas no jornal britânico The Daily Telegraph. O motivo: espionagem, logo no dia D, o desembarque nas praias da Normandia, uma coincidência acerca do codinome da operação, publicada no jornal naquele dia. O que não se sustentou.  Ao longo da história sobre as palavras cruzadas, Zeno se estreita a relação com Quester e chega a ir a Nova York a pedido do professor para fazer pesquisa in loco. Na grande maçã, ele se lamuria para a ex-namorada, praticamente perde a viagem e volta para a Itália de mãos abanando. Na história, Zeno tem flashbacks de volta à infância por causa de sua filhinha. PB em quase todas as páginas, cores aparecem em micro histórias que entrecortam a narrativa principal. São personagens significativas que reiteram o espírito do homem urbano sempre se digladiando sobre o sentido da vida, o que dá certa leveza à narrativa.  Diz a lenda que certa vez o escritor e jornalista Truman Capote, autor de A Sangue Frio, abriu o jornal e nas cruzadas viu seu nome como uma resposta para uma das perguntas. Entusiasmado, ligou para amigos para afirmar que, a partir daquele feito, estava definitivamente famoso. Capote até hoje aparece em cruzadas, que, inclusive, superam o autor de best-sellers em leitura, no mundo. De Simone de Beauvoir a Marcelo Mastroianni, Bacilieri recheia FUN com homenagens a grandes fãs do jogo, grandes escritores e artistas.  Passatempo multifuncional, as palavras cruzadas atravessam os anos fisgando adeptos de todas as idades. Um jogo democrático e plural, ele vem sendo explorado, revisitado e até descoberto por aspirantes durante a pandemia da covid-19. Como tempo em casa não falta, sentar-se à mesa para resolver um esquema enquanto se abre o jornal de domingo é uma cena que pertence a um mundo antigo, que se renova. As palavras cruzadas acompanham os movimentos da sociedade, alternando perguntas da cultura pop a elementos do mundo erudito.  Saudável para a memória e rica em aumentar vocabulário, o jogo ressurge como uma alternativa ao inferno tecnológico dos dispositivos eletrônicos que, por ironia, também possuem versões de palavras cruzadas, embora o charme do passatempo, em papel jornal, seja inigualável.

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