Ian McEwan emula Franz Kafka para satirizar Brexit em novo livro

Em 'A Barata', é o inseto monstruoso que se vê transformado no primeiro-ministro britânico após acordar de sonhos inquietos

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Por Jerônimo Teixeira
Atualização:

O protesto aterroriza Jim Sams: são dez mil pés que marcham pelas ruas de Londres, e qualquer um deles pode esmagá-lo. Pois Sams é o detestado inseto que dá título ao novo livro de Ian McEwan, A Barata.

O escritor britânico Ian McEwan Foto: LAUREN FLEISHMAN/THE NEW YORK TIMES

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O escritor inglês demonstra, nessa passagem, sua invulgar capacidade técnica: consegue fazer com que o leitor veja o mundo pela perspectiva de uma barata que, sorrateira, percorre o trajeto que vai do Palácio de Westminster, sede do Parlamento britânico, até a casa de número 10 de Downey Street, residência oficial do primeiro-ministro. Há lances de pavor, e também de humor – diante de um monte de estrume que a guarda montada deixou sobre o calçamento, Sams inebria-se com o “aroma de nozes com toques de petróleo, casca de banana e sabão para selas de couro”.

A essa altura da narrativa, porém, o leitor já sabe que esse herói cascudo nem morreu sob a sola de um sapato nem parou para se refestelar no cocô do cavalo: esses obstáculos são parte dos eventos da noite anterior, que ele revisa mentalmente, deitado na cama. Sams deixou de ser uma barata, como se esclarece já na primeira frase da narrativa: “Naquela manhã, Jim Sams, inteligente mas de forma alguma profundo, acordou de um sonho inquieto e se viu transformado numa criatura gigantesca”. Jim Sams transformou-se em um ser humano. E não qualquer ser humano: é o primeiro-ministro do Reino Unido. 

A Barata homenageia A Metamorfose, clássico de Kafka. A primeira frase da novela de McEwan glosa a abertura famosa da narrativa do escritor, e o nome Jim Sams lembra Gregor Samsa, o infeliz caixeiro-viajante que, em A Metamorfose, vê-se transformado em um “inseto monstruoso”. McEwan já havia se dedicado antes a esses jogos de alusões literárias: Enclausurado reencena Hamlet, de forma brilhante, com um feto no lugar do príncipe da Dinamarca.

Se naquela obra as linhas centrais da tragédia de Shakespeare estavam mais ou menos preservadas, em A Barata, Kafka fornece apenas o mote inicial. Trata-se aqui de uma sátira política, cujo tema se vislumbra na passeata em que Jim Sams quase morre esmagado: os manifestantes carregam bandeiras com “estrelas amarelas num fundo azul” – ou seja, a bandeira da União Europeia que os remainers, britânicos contrários ao Brexit, levantam em seus protestos.

No mundo alternativo criado por McEwan, porém, a mudança que os cidadãos do Reino Unido aprovaram em plebiscito popular é de um absurdo mais extremo. A maioria votou pela implantação do “reversalismo”, esdrúxula doutrina econômica cuja ambição é reverter o fluxo monetário: o consumidor receberia dinheiro pelas mercadorias que adquire no comércio; em compensação, estaria obrigado a pagar a seu empregador pelas horas que passa no trabalho.

Em traços rápidos, McEwan cria antecedentes históricos para essa excêntrica teoria, que, menosprezada pelos políticos tradicionais, ganhou tração com a emergência de um Partido Reversalista (clara paródia do Ukip, sigla que tem no Brexit sua bandeira fundamental). Um primeiro-ministro do Partido Conservador elege-se com a promessa de um plebiscito sobre o tema, mas – tal como David Cameron ao chamar a votação sobre a saída da União Europeia – esperava que o reversalismo saísse derrotado das urnas. Foi sucedido por outro conservador, Jim Sams, que abraça com muitas reservas a tarefa de realizar a vontade expressa no plebiscito (como Theresa May). Mas as hesitações de Sams desaparecem logo que a barata toma o comando do primeiro-ministro. Aqui temos, como se vê, não uma metamorfose, mas uma invasão de corpos, à moda de filmes de ficção científica. Sams não está sozinho: quase todos os integrantes de seu gabinete são “invadidos” por baratas. 

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O novo Jim Sams, como uma versão muito perversa de Boris Johnson, revela-se um político caviloso. Hábil manipulador da opinião pública, consegue plantar notícias falsas na imprensa para desgraçar um adversário (o episódio não é lisonjeiro com o jornal The Guardian – que, no entanto, publicou uma resenha bastante favorável de A Barata). Em meio a esse tumulto político, o clima também parece se revoltar, com inundações seguidas de ondas de calor. As evocações de pragas bíblicas são inevitáveis para a “substancial minoria do eleitorado convencida de que se estava prestes a viver uma catástrofe”, mas McEwan, racionalista por temperamento – leia-se, a propósito, a arguta crítica do pensamento apocalíptico que ele faz em Blues do Fim dos Tempos, ensaio publicado recentemente pela Âyiné –, mantém essa matéria mítica confinada no cercado da ironia. 

Críticos britânicos colocaram A Barata na tradição satírica de Jonathan Swift, e um antecedente mais próximo pode ser A Revolução dos Bichos, de George Orwell. A fábula de McEwan revela-se mais tradicional que a de Orwell: há até uma espécie de “moral da história” no discurso em que Sams explica por que as baratas abraçaram a causa do reversalismo. A Barata é um livro delicioso, mas um título menor na obra de Ian McEwan. Não tem o escopo monumental de Reparação, nem a beleza melancólica de Na Praia. Mas é revigorante constatar que uma intervenção pontual no debate político do momento também rende boa literatura.

Kafka e o humor

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” A primeira frase de A Metamorfose – aqui na consagrada tradução de Modesto Carone, falecido no final do ano passado – não especifica em que inseto o infeliz protagonista se transformou. 

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As descrições ao longo da novela, publicada em 1915, sugerem um besouro. Consagrou-se, no entanto, a noção de que o inseto é uma barata, e Ian McEwan seguiu a lenda. 

Franz Kafka, o autor, foi um judeu checo que escrevia em língua alemã e parecia não pertencer a lugar algum. Nasceu em 1883 em Praga, no então Império Austro-Húngaro, extinto depois da 1.ª Guerra Mundial. Passou a maior parte da vida na cidade natal, e morreu de tuberculose, em um sanatório na Áustria, em 1924. Publicou pouco em vida, e deixou uma famosa instrução para que o amigo Max Brod destruísse seus inéditos. Brod felizmente desobedeceu a recomendação, entregando à posteridade obras como O Processo e O Castelo

O adjetivo “kafkiano” vulgarizou-se para designar situações em que o homem comum, como o Joseph K. de O Processo, se torna presa do absurdo da burocracia moderna – que Kafka, como funcionário de empresas de seguros, conheceu de perto. Mas sua obra é mais ampla do que o adjetivo faz supor.

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Embora haja escassa referência direta à política do seu tempo na ficção de Kafka, pesadelos como Na Colônia Penal talvez prefigurem os totalitarismos do século 20. Sua literatura instiga interpretações as mais variadas – há um Kafka dos marxistas, dos psicanalistas, dos existencialistas, dos místicos –, mas permanece impermeável a todas elas.

A imagem consolidada de Kafka como um autor enigmático e sombrio tende a obscurecer o elemento cômico de contos como Um Relatório para uma Academia – incluído em Um Médico Rural, coletânea publicada em 1919 –, no qual um macaco conta como assumiu a condição humana. 

Homenagem a Kafka, A Barata, sátira desbragada de McEwan, talvez sirva para lembrar que o autor de A Metamorfose é, entre outras coisas, um gênio do humor judaico. *JERÔNIMO TEIXEIRA É JORNALISTA, ESCRITOR E AUTOR DE ‘OS DIAS DA CRISE’ (COMPANHIA DAS LETRAS)

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