Ideias da filósofa Simone Weil voltam com força na pandemia

Pensadora francesa tem obra reeditada e sua fama póstuma só cresce nos últimos anos

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Por Paulo Nogueira
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Tem maior chato de galocha do que um santo – que não bebe, não dança, não brinca nem ri e passa a eternidade lustrando sua auréola? A pensadora francesa Simone Weil chegou ao ponto de não comer. Mas, com ela, não cabem as hagiografias: de esquerda e convertida ao Cristianismo, deixou pistolas tanto marxistas quanto católicos, que a consideraram herege, uma santa do pau oco. Weil levou uma vida breve mas rocambolesca. Tinha uma personalidade rara, por vezes exasperante pela (passe a palavra maldita) bondade e decência quixotescas e até seráficas, sem uma gota de hipocrisia ou banalidade – mas também de um ascetismo patológico e eventualmente kamikaze. A frase icônica dela é: “Atenção é a forma mais pura e rara de generosidade”. Perante o sofrimento alheio, nada de dar de ombros e rosnar: “E daí?”

A filósofa francesa Simone Weil Foto: Editora Ayine

A Âyiné relança Reflexões sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social. Weil escreveu sobre ética, economia, revolução, cultura clássica, religião. A fama dela é quase que póstuma (e não pára de crescer). A maior parte do que publicou em vida foi em jornais radicais de pequena circulação – o resto ficou em seus cadernos. Entre seus tietes estão Albert Camus (“Ela foi o maior espírito do nosso tempo”), T.S. Eliot, Czeslaw Milosz, André Gide, Iris Murdoch e Susan Sontag.  Weil nasceu em 1909, em Paris, numa família abastada de judeus seculares – Simone percebeu que era judia aos 10 anos. Ela e o irmão mais velho, André, eram mimadíssimos, uma proto-geração Nutella. A mãe não permitia que ninguém fora da família os beijasse, e encorajava a lavagem obsessiva das mãos. As crianças eram gênios precoces. A biografia referencial de Simone é a de Francine du Plessix Gray, mas talvez ainda mais elucidativo seja The Weil Conjectures, de Karen Olsson, sobre os manos. Aos 12 anos, André resolvia problemas matemáticos além do nível de doutorado, e lia Platão e a Ilíada no original grego. Um dos pais da teoria dos números e da geometria algébrica, ele inventou a notação "Ø" para representar o conjunto vazio (em 1994 recebeu o Kioto Prize, o Nobel da matemática). Viveu até os 94 anos, e lecionou no Instituto de Estudos Avançados de Princeton.

Weil trata da falta de autonomia e do sufoco do homem moderno; na foto, o artista britânico Anthony Gormley Foto: Kieran Doherty/Reuters

Simone e André seguiam no ônibus escolar papeando em latim e grego, ou esgrimindo passagens de Corneille e Racine. Mais tarde, na II Guerra Mundial, André foi detido por deserção, e aproveitou para escrever matemática pura. Depois disse a Simone que era impossível explicar sua teoria a leigos, pois não se pode explicar uma sinfonia a um surdo. Ela lacrou: “Qual o sentido de uma verdade que as pessoas comuns não conseguem entender?”  Simone, aos seis anos, se recusou a comer doces e chocolates, porque os soldados no front de batalha da I Guerra tampouco os comiam. Aos 10, os pais a encontraram a quadras de casa, numa manifestação sindical. Ela justificou-se: “Se eu tivesse dez vidas, daria uma vocês – mas tenho apenas uma”. Já adulta, se absteve de ligar o aquecedor no inverno, para sentir o mesmo frio que os pobres sentiam. No colégio seu mentor foi o filósofo Alain (pseudônimo de Emile Chartier). Foi para ele que enviou o primeiro rascunho de “Opressão e Liberdade”. Por causa das roupas esquisitas que a pupila usava, Alain apelidou-a de “marciana”. Simone não apenas foi uma das primeiras mulheres a estudar na concorridíssima École Normal Supérieure, como passou no exame em primeiro lugar (em segundo ficou outra Simone: a de Beauvoir). Embora Weil tentasse viver com saúde e fazer exercícios – aderiu ao primeiro time feminino de rúgbi da França! – sua ânsia de autodomínio e transcendência era avassaladora. Chegava a queimar-se com o cigarro para ficar acordada durante os estudos, ou testar a sua resistência a dor. Como tantas místicas, virou anoréxica. As colegas de escola a chamavam de “a virgem vermelha” (desde a adolescência rejeitou a intimidade física).  Formada, lecionou nos cafundós da França, mas largou o magistério e foi trabalhar como operária na linha de montagem da Renault (resultado: inflamação na pleura). Ativista de esquerda, pintando e bordando no movimento sindical (deu aulas de economia aos operários), Weil se opôs tanto ao PC francês quanto ao comunismo soviético, refutando a noção de um Lênin bonzinho que Stalin avacalhou.  Magrela, foi combater os fascistas na Guerra Civil Espanhola. Desajeitada, enfiou o pé numa panela de óleo fervendo e acabou hospitalizada – o que salvou a vida dela, pois no dia seguinte seu pelotão foi aniquilado. Na II Guerra mundial, com o Governo Provisório francês no exílio em Londres, queria saltar de paraquedas sobre a França ocupada, numa “missão secreta, preferivelmente perigosa”. De Gaulle resmungou: “Mas essa moça é doida!” Ao que ela replicou: “Se eu quisesse me matar, teria ficado em Nova York com os meus pais.” Quanto ao Cristianismo, era o mesmo dilaceramento: ela não podia acreditar, nem não acreditar. Teve duas experiências místicas (uma delas em Portugal), e declarou: “Toda a vez que penso na crucificação de Cristo, cometo o pecado da inveja”. Ao mesmo tempo, ficou impressionada com o Bhagavad Gita e aprendeu sânscrito para o ler no original. Depois foi trabalhar numa colônia rural católica, colhendo uvas, dormindo no chão e comendo só cebolas e tomates. Como Nietzsche, Simone observou que “o Cristianismo é a religião dos escravos” – só que ele com desdém, e ela com admiração.  É possível que psicólogos reduzam Weil a uma obsessão mórbida pelo martírio, através do álibi do idealismo. E é bem verdade que fervor não confere necessariamente autoridade moral. Mas como ela conclui em “Opressão e Liberdade”: “Só fanáticos podem atribuir valor à sua própria existência unicamente se ela serve a uma causa coletiva; reagir contra a subordinação do indivíduo à coletividade implica que se comece recusando a subordinação de seu próprio destino ao curso da história.” Por vezes é como se Simone falasse de 2020: “O período presente é uma daquelas épocas nas quais tudo o que normalmente parece constituir uma razão para viver se desvanece; em que, sob pena de se perder na confusão ou na inconsciência, devemos questionar tudo. Apenas uma parte do mal que sofremos pode ser atribuída ao triunfo dos movimentos autoritários e nacionalistas que destroem um pouco, em todos os lugares, a esperança que as pessoas honestas haviam depositado na democracia; ele é bem mais profundo e vasto.” Tuberculosa, em Londres, Weil foi enviada para um sanatório, onde recusou alimentos, insistindo que as refeições deveriam ir para a França. Morreu de parada cardíaca em 1943, aos 34 anos. Uma rua da cidade foi batizada com seu nome. É controverso que ela tenha aceitado o batismo no leito de morte. A escritora americana Flannery O”Connor (ela própria católica), comentou: “O que é mais cômico e terrível do que essa mulher altiva se aproximando de Deus centímetro a centímetro, com os dentes cerrados? Ao dizer isso, estou lhe prestando a maior homenagem que posso, exceto chamá-la de santa.” Já a ateia Susan Sontag também ajuda a pingar os is: “Lemos autores dessa originalidade singular pelo seu crédito pessoal, pelo exemplo de sua seriedade, por sua intenção evidente de se sacrificar por suas verdades e – apenas aos poucos, mas cada vez mais – pelos seus pontos de vista.” Como letra de bolero, as últimas palavras de Simone Weil poderiam ter sido: “Nunca fui santa.” E, de novo como Nietzsche, mas de novo ao contrário, acrescentar: “Apenas humana, demasiado humana”. *PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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