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Ilaria Gaspari: 'A felicidade nos parece fugidia e por isso nos assusta'

Pensadora italiana relata em livro o experimento pessoal que fez ao aplicar conceitos da filosofia grega em busca de uma vida mais plena

Por Júlia Corrêa
Atualização:

Imagine a seguinte situação: ao viver uma frustração amorosa, você busca refúgio nos livros de sua biblioteca e encontra, entre as páginas, sugestões tão peculiares como “não tocar nas favas” ou “não sentar sobre os jarros”. Pois foi isso que aconteceu com a filósofa italiana Ilaria Gaspari, autora da obra Lições de Felicidade – Exercícios Filosóficos Para o Bom Uso da Vida, recém-lançada pela editora Âyiné.

A filósofa Ilaria Gaspari Foto: Editora Âyiné

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As curiosas prescrições encontradas por Ilaria foram formuladas há cerca de 2.500 anos e estão na base da escola pitagórica, ponto de partida de um experimento existencial que ela decidiu pôr em prática e compartilhar com os leitores nesta publicação que chega agora ao Brasil.  Ao esvaziar o apartamento em que vivera com o antigo parceiro, Ilaria deparou com livros que não folheava há muito tempo. Eram títulos de filosofia lidos na época universitária, isolados nas prateleiras mais altas de sua biblioteca. Em cima da escada, coberta de poeira, a italiana deu-se conta de que havia estudado a disciplina como uma coisa morta, sem perceber a sua riqueza.  Foi assim que ela decidiu lançar um olhar mais generoso aos mestres gregos, desafiando-se a pôr em prática, ao longo de seis semanas, os ensinamentos de diferentes escolas filosóficas. Certamente, não foi possível levar ao pé da letra todas as lições de Pitágoras, que, em certos casos, exigiram a apreensão apenas de seu sentido figurado. Mesmo sem tantas regras descabidas, as escolas eleática, cética, estoica, epicurista e cínica, que complementam seu exercício, impuseram também desafios à rotina da jovem filósofa. Em entrevista ao Estadão, ela dá mais detalhes da experiência.

Por que as pessoas mantêm a filosofia como algo tão distante de seu dia a dia? Nós estamos habituados a vê-la assim, um pouco porque a associamos a uma ideia de um estudo escolar, um pouco porque, efetivamente, a estudamos na escola sobretudo de uma maneira conteudista (ao menos na Itália, não sei se é assim no Brasil). É importante conhecermos o desenvolvimento histórico, claro, mas muitas vezes essa abordagem paralisa um pouco a filosofia: lembramo-nos mais dela pelas perguntas na escola do que pelas perguntas que ela nos ajuda a formular. Acredito que seria interessante abordar o pensamento filosófico de um modo mais livre e generoso, que tenha menos a ver com o desempenho escolar e com o aprendizado de conceitos. Um outro preconceito comum é aquele segundo o qual a filosofia “não serve para nada” e é somente uma coisa de “entendidos”. Na realidade, mesmo as escolas filosóficas antigas que eu “frequentei” para o meu experimento demonstram o quanto as questões de que se ocupavam os mestres gregos da filosofia estão próximas de nossa vida e de nossa experiência.

O seu exercício foi realizado de maneira solitária. Qual foi a maior dificuldade de não poder compartilhá-lo com outras pessoas, como muitos antigos faziam ao reunir-se em escolas?

A primeira dificuldade era a de me sentir um pouco perdida e de precisar confiar inteiramente na minha força de vontade para continuar o experimento: se eu tivesse tido companhia nesta aventura, provavelmente, teria sido mais simples porque seria confrontada pelo outro. Mas, naturalmente, não poderia envolver outra pessoa em meu exercício, uma vez que se tratava de um estudo experimental que comecei por conta própria, mesmo com um pouco de loucura. Quando comecei a escrever o livro, não sabia como se daria meu experimento: entreguei-me ao seu desenvolvimento. Isso significava que, à medida que seguia em frente, ia para direções que não havia imaginado inicialmente. E uma coisa que me me marcou foi o fato de que uma experiência que se iniciou muito solitária e muito ligada à introspecção acabou me levando, por seguir as regras de cada escola, a abrir-me aos outros na última semana: sobretudo o epicurismo e o cinismo pregam uma abertura aos outros que é essencial (fui perceber isso enquanto trabalhava no experimento) para se conhecer verdadeiramente.

Livros sobre filosofia raramente abordam questões privadas de seus autores. Você sentiu alguma hesitação em falar abertamente de um episódio traumático de sua vida pessoal? Com certeza! Mas também foi libertador, porque me encontrei a falar sobre aquilo que considero falhas, embaraços, erros e defeitos. São coisas das quais normalmente nos envergonhamos e, portanto, são muito difíceis de admitirmos. Me vem em mente uma frase de Leonard Cohen no seu romance A Brincadeira Favorita, quando ele diz: é muito mais fácil mostrar uma cicatriz do que uma espinha. São coisas das quais nos envergonhamos porque as sentimos presentes, sentimos que condicionam nossa vida, mas frequentemente nos fazem sofrer por causa da vergonha que nos causam. Se descobrimos que os outros também sofrem com isso, se tais coisas tornam-se motivo de riso com os outros, sofremos muito menos! Não digo que ter compartilhado minhas falhas e meus defeitos neste livro tenha acabado com a minha vergonha; mas parei de me sentir prisioneira dela. Não o fiz por exibicionismo, para expor os meus defeitos e meus problemas, mas para ver o efeito que isso teria em uma reflexão de orientação filosófica e para tentar revelar também o que geralmente permanece fora do discurso filosófico. Nesse sentido, foi também importante a escolha de dar ao percurso contado no livro uma forma narrativa: acredito que contar é importante precisamente porque nos permite ver que nem sempre temos razão. 

Nesse mesmo sentido, quais foram os desafios de conciliar esse perfil peculiar de seu "exercício existencial" com a precisão filológica tão valorizada no meio acadêmico?

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Foi bastante natural no momento em que decidi que deveria ser um ensaio narrativo, uma espécie de romance filosófico: um gênero que tentei reinventar, atualizando-o e partindo de uma grande paixão minha, os textos que combinam reflexão e narrativa. Na maioria das vezes, são textos humorísticos: penso, por exemplo, em O Sobrinho de Rameau e em Jacques, o fatalista, de Diderot. Era um gênero muito em voga nos anos 1700 — penso naturalmente também em Cândido, de Voltaire —, mas que, na verdade, tem suas raízes na antiguidade, como em Luciano (de Samósata). Eu realmente adoro a conexão entre narrativas bem-humoradas e a reflexão: obviamente, não quero me comparar a esses grandes autores, simplesmente minha ideia era tentar reviver um gênero literário que considero particularmente fecundo para o que pode nos levar a refletir, a ver e compreender sem muito esforço uma ideia conceitualmente complicada. 

Algo que chama atenção no seu relato são as reflexões, ao longo do experimento, sobre a sua relação com o tempo. O atraso na realização das tarefas, as expectativas sempre voltadas ao futuro... A dificuldade de viver o presente é uma característica da vida contemporânea? Sim, absolutamente! Vivemos em um mundo que nos pede para realizar muito, para ter um bom desempenho, para sermos ou nos apresentarmos como melhores do que os outros: mais fortes, mais aptos a trabalhar, mais bonitos, mais felizes, quando não mais ricos. Esta pressão constante é ampliada com o uso das redes sociais, em que estamos sempre expostos a um confronto com o outro e em que a interação se dá na contagem do número de likes, ou seja, na aprovação explícita. É algo que pode ser extremamente estressante também no mundo do trabalho, à medida que os métodos de emprego se tornam mais fluidos, a competição e o chamado para dar, fazer e demonstrar mais do que seria feito se não houvesse essa pressão se torna mais forte. Nesse sentido, acredito que seja muito comum viver voltado ao futuro. Claro, não é uma novidade da nossa época, mas, nessas condições, para nos tornarmos um currículo mais atraente, para ganharmos um bom lugar no mundo de amanhã, nossa vida torna-se bastante angustiante. A este respeito, é interessante notar que a ideia que temos de felicidade muitas vezes está ligada a um momento de relaxamento em que não nos preocupamos com o futuro; mas, precisamente por isso, a felicidade nos parece algo fugidio e difícil de dominar, que por isso nos assombra e nos assusta um pouco. Os gregos tinham uma ideia muito interessante, na minha opinião, do tempo e do presente, tanto que tem até uma palavra, kairós, que indica o tempo não no sentido do seu fluxo ou num presente que se torna futuro, mas num sentido qualitativo, como um momento para viver. Acho que é um conceito que deve ser recuperado.Em que medida aproximar a filosofia do nosso cotidiano pode nos ajudar em momentos de crise, como este de pandemia? Aliás, a experiência lhe ajudou a lidar com o isolamento social? Eu escrevi o livro antes mesmo de imaginar que a pandemia chegaria; muito antes de viver o isolamento do lockdown, eu experimentei o meu próprio autoisolamento para desenvolver o experimento que narro no livro. A coisa mais estranha é que, quando teve início a pandemia, muitas pessoas na Itália o pegaram para ler e o redescobriram (já participei de muitos encontros com leitores que realmente queriam aprofundar a ligação entre esse tipo de experimento e a ajuda que ele poderia nos dar quando todos mudássemos nossos hábitos). Mas talvez o mais importante tenha sido que algumas dessas escolas (refiro-me em particular às helenísticas: o epicurismo mas também certa versão do estoicismo e do ceticismo) me ajudaram, em um exercício de elasticidade mental, a me ambientar em um mundo assustado sem me deixar sentir chantageada pelo medo. Epicuro elabora uma filosofia que tem o objetivo explícito de curar os males da alma humana e tenta libertar os homens da escravidão do medo: é um instrumento lógico e ético muito interessante que ele nos deixou, e podemos usá-lo com grande proveito no mundo de hoje, diante desse novo medo.Após o término de seu experimento, você incorporou algo dessas práticas filosóficas na sua busca pessoal por felicidade? Sim, muitas! Continuo fazendo a cama conforme a prescrição de Pitágoras, ou seja, alisando completamente as marcas do corpo, e devo dizer que durmo muito melhor. Em segundo lugar, mantenho a ideia cética de me distanciar das minhas percepções e relativizá-las quando discuto com os outros. Com Epicuro, seguramente, aprendi a encontrar sistemas lógicos para desmantelar meus medos quando eles parecem mais irracionalmente ameaçadores; por fim, a última semana, a cínica, me rendeu um cachorro! Na verdade, ainda não tinha adotado um cachorro quando escrevi o capítulo, mas o escrevi imaginando a vida futura com um. Quando o livro foi publicado, tive coragem de ir a um abrigo para cães e adotar um. O engraçado é que a vida que levo agora com meu cachorro se parece muito com a que imaginei ao escrever o livro. Uma das coisas que o cão me ensinou, e que está muito de acordo com esta filosofia milenar, é ficar no presente: explorar a cidade, o mundo, os parques, os campos e estar realmente presente, concentrado no momento. Um cão tem uma noção de tempo muito limitada no presente e acredito que pessoas como eu, sempre olhando para o futuro, só têm o que aprender com essa atitude.

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