Imprudência que decolou

Discutida, atacada, Brasília chega aos 50 anos como a maior contribuição brasileira à arte do século 20

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Por André Aranha Corrêa do Lago
Atualização:

Não se pode negar: Brasília é a maior contribuição brasileira à arte do século 20. Apesar de um século de considerável produção cultural - com grandes momentos na nossa arte contemporânea, o Cinema Novo e, sobretudo, a Bossa Nova - acredito que em nenhuma outra expressão artística o Brasil terá atingido internacionalmente o patamar de respeito, aceitação e influência que conseguiu nossa arquitetura, principalmente graças a Brasília.

 

 

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Nossa capital já foi amplamente discutida e continua a provocar, com 50 anos, os mais variados debates e opiniões; por isso procurarei concentrar-me no que me parece mais relevante: o fato de Brasília ser a realização mais completa de uma utopia que ocupou algumas das mentes mais favorecidas do século passado e, também, o de ser o símbolo mais inequívoco de que somos capazes de inserir-nos no main stream da arte ocidental.

 

O reconhecimento do Brasil como ator na arquitetura do século 20 veio pela construção (entre 1937 e 1942), no Rio de Janeiro, do Ministério da Educação e Saúde (hoje Palácio Gustavo Capanema). Logo depois, veio a repercussão internacional do conjunto da Igreja, do Iate Clube, da Casa de Baile e do Cassino da Pampulha (1943), que definiu Oscar Niemeyer como o grande nome da geração. Essas obras revelaram ser possível, em um país de mínima influência cultural em termos mundiais, a existência de um grupo de jovens arquitetos capazes de interpretar com talento as teorias e os princípios mais avançados do momento e até de dar novos rumos à arquitetura moderna.

 

No final dos anos 40 e início dos 50, a arquitetura moderna já tinha conquistado muitos novos adeptos em todo o mundo, tanto entre os profissionais como na academia. Isso foi possível, em parte, por ter sido um movimento rejeitado por Hitler e Stalin, mas também por diversos outros motivos, como o aperfeiçoamento e a diminuição dos custos das novas técnicas de construção e a divulgação das novas ideias com a participação de arquitetos de todo o mundo nas reuniões periódicas do Ciam (Congrès International d’Architecture Moderne).

 

O Ciam havia publicado em 1933 a Carta de Atenas, um manifesto que preconizava a adoção de um novo urbanismo com clara divisão entre os espaços de moradia, trabalho e entretenimento. A influência do Ciam permitiu que a reconstrução de novos bairros e cidades na Europa do segundo pós-guerra respeitasse, de maneira geral, os princípios da Carta de Atenas. Só foi possível, contudo, a execução de versões muito modestas dos projetos urbanísticos revolucionários desenvolvidos naquele continente em décadas anteriores.

 

As diferenças entre a visão norte-americana e europeia eram ainda mais marcantes na área de urbanismo: a falta de espaço físico para a expansão das cidades - um dado primordial na Europa - nunca preocupou os urbanistas norte-americanos, que favoreceram as propostas que incluíam solucionar o crescimento das cidades com a descentralização e a criação de núcleos autossuficientes.

 

Com o final da Segunda Guerra, os países da América Latina e as novas nações que se formavam na Ásia acabaram tornando-se o melhor terreno de prova para uma arquitetura que muitos viam como símbolo de confiança no futuro. Le Corbusier consegue, na Índia, transformar em realidade parte de suas teorias urbanísticas com a criação de Chandigarh (1951-1956), a nova capital da Província de Punjab.

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Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se erguia Chandigarh, o desânimo dos arquitetos com a dificuldade de realização de grandes projetos urbanos, principalmente na Europa, o continente que havia visto nascer a arquitetura moderna - provoca o questionamento da Carta de Atenas até mesmo no seio do Ciam, e leva uma nova geração a desenvolver planos menos radicais e megalomaníacos. O planejamento utópico "tabula rasa" foi substituído pela busca de um relacionamento mais complexo e favorável entre o casco urbano antigo e as novas funções.

 

Quando o governo de Juscelino Kubitschek lança o concurso nacional para o Plano Piloto de Brasília, em 1956, a vanguarda da arquitetura internacional já não sonhava com a realização da cidade revolucionária. Mas não porque a ideia havia falhado e sim porque sua realização, pelo menos na Europa e nos EUA, se havia revelado impossível. Chandigarh, o que havia de mais próximo do sonho de uma geração de arquitetos até aquele momento, era criticada em todas as frentes: para alguns, era a imposição de conceitos ocidentais discutíveis a uma sociedade não ocidental; para outros, eram conceitos extraordinários executados por uma sociedade discutível.

 

No Brasil, no entanto, estávamos no auge da confiança no futuro, e a nova capital tinha de refletir uma sociedade disposta a realizar utopias. A vitória de Lúcio Costa no concurso nacional para o projeto urbanístico de Brasília esteve longe de ser unanimidade. Mas a grande força do Plano Piloto era não ser apenas mais uma cidade, e sim uma capital. Lúcio Costa, em seu texto explicativo, afirmava que a ideia lhe parecia tão boa que "os dados, embora aparentemente sumários, seriam suficientes"; com isso, se o projeto não agradasse, ele não teria perdido seu tempo "nem o dos outros."

 

A aceitação de Brasília pelo público não especializado foi imensa, e não apenas no Brasil. Não é exagero, basta ver as revistas e os jornais da época na França, na Itália, nos EUA, etc. A divulgação de magníficas fotos - sobretudo as de Marcel Gautherot - de seu urbanismo radical e de seus principais monumentos, projetados por Oscar Niemeyer, cativou uma geração e provou que era possível fazer arquitetura governamental, monumental e moderna. Brasília, segundo o crítico Paul Goldberger, simboliza, "com mais força do que qualquer coisa construída nos Estados Unidos, a fé inquebrantável dos anos 50 de que o design moderno podia criar um mundo melhor."

 

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A crítica especializada, no entanto, procurou derrubar rapidamente o ícone popular. A chegada do regime militar, em 1964, facilitou a operação, e a cidade criada em um dos mais dinâmicos períodos democráticos do Brasil acabou sendo associada mundo afora ao totalitarismo. A crise econômica brasileira, apesar da redemocratização, dissociou Brasília do otimismo e do futuro e a cidade passou a ser estudada por antropólogos e sociólogos mais do que por críticos de arquitetura. A construção de um número considerável de edifícios monstruosos não ajudou.

 

Peter Blake, em seu livro Form Follows Fiasco, de 1977, refere-se a Brasília como a "solução final". Edmund Bacon, no entanto, em Design of Cities, um dos livros sobre urbanismo mais influentes até hoje, afirma que só é possível apreciar a cidade depois de visitá-la: "Muito maltratada pelos críticos, cuja maioria não conhece pessoalmente a cidade, Brasília representa para a arquitetura contemporânea o mais significativo exemplo de cidade planejada como um todo."

 

Segundo a revista The Economist, "Brasília é ao mesmo tempo a glória e a tumba do ideal modernista". É a glória porque dentro de cem anos a imagem de cidade planejada do século 20 será Brasília. E é a tumba porque, como diz Goldberger, Brasília "prova melhor do que qualquer outro lugar (...) que a arquitetura moderna não sabe fazer cidades, apesar de fazer edifícios maravilhosos."

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Brasília é o primeiro conjunto arquitetônico moderno a ser colocado na lista do Patrimônio da Humanidade da Unesco. Isso deve nos recordar que nossa capital é uma cidade de concepção moderna, mas não contemporânea. É um conjunto arquitetônico do passado - apesar de recente - e deve ser tratado como tal. Brasília, se forem respeitados os princípios que orientaram sua criação, deverá ser, cada vez mais, para o Brasil e para o mundo, o símbolo de uma época. Como disse Mário Pedrosa, "se Brasília foi uma imprudência, viva a imprudência."

 

Todas as grandes cidades têm defeitos e não se deve negá-los, mas o fato de, por exemplo, os setores comerciais norte e sul não conseguirem agradar a ninguém, não justifica condenar o plano piloto como um todo. Há muitos políticos e arquitetos - atraídos por espaços "vazios" ou "subutilizados" - que se sentem tentados a "corrigir" os erros da cidade, mas o maior erro seria desviar-se dos planos originais. Se não preservarmos Brasília da maneira como foi concebida por Lúcio Costa teremos talvez uma cidade mais "normal", mas certamente teremos uma cidade feia e sem personalidade, como a maioria das cidades brasileiras.

 

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Toda alteração em setores previstos no plano de Lúcio Costa deve ser feita sem afetar os princípios basilares do urbanismo da cidade. Por exemplo, a alteração da circulação nos setores comerciais sul e norte ou nos setores hoteleiros pode ser feita segundo o princípio de "acupuntura urbana", defendido por especialistas como Jaime Lerner: ou seja, corrigem-se problemas pontuais, sem questionar a lógica geral da cidade. Temos que evitar mais erros, pois muitos já foram cometidos. Devemos, a todo custo, preservar de maneira muito atenta o espírito modernista de Brasília, pois é a maior contribuição brasileira à arte do século 20.

 

*Diplomata, crítico de arquitetura e autor de diversas publicações sobre o tema. Uma versão ampliada deste texto, baseado em artigo para o site no.com, fará parte do livro Brasília: Cinquenta Anos, a ser publicado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo em 2010

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