João Anzanello Carrascoza vê literatura nacional como 'um mapa se mexendo'

Autor de 'Elegia do Irmão' fala sobre momento do País, autores novos e seu livro mais recente

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Por João Prata
Atualização:

Relações afetivas são um tema recorrente na literatura do paulista João Anzanello Carrascoza. Em Elegia do Irmão, o autor explora o amor fraterno, tema pouco explorado em sua obra. No romance, Carrascoza conta a vida de Mara, de 29 anos, que se descobre portadora de uma doença sem cura. As lembranças emergem sob o ponto de vista do irmão, que num primeiro momento precisa lidar com a trágica notícia e depois superar o luto. O autor conversou com o Estado sobre o processo criativo da nova obra, as dificuldades enfrentadas por conciliar duas profissões pouco valorizadas no País (Carrascoza, além de escritor, é também professor universitário) e a visão otimista sobre o atual momento da literatura nacional: “Tem um mapa se mexendo e isso é bom.” 

O escritor João Anzanello Carrascoza Foto: Werther Santana/Estadão

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Por que escrever sobre a relação entre irmãos? Questão de necessidade. Os laços afetivos aparecem muito na minha obra, sobretudo de pai e filho, mãe e filho. De irmãos, não sei por que, não tinha trabalhado muito. Talvez os outros laços fossem mais obsessivos como escritor.

A história é contada do ponto de vista da perda. Seu livro anterior, de certa forma, serviu de inspiração? O Catálogo de Perdas, que é de contos, tinha muitos depoimentos de narradores contando suas perdas. Acontece que para dar ideia de pluralidade tinha também uma situação de irmão falando sobre irmão. A capa do livro é de uma irmã contando sobre um irmão. É um conto muito duro. Me veio a ideia de que poderia trabalhar com esse sentimento, esse tipo de ligação fraternal. Até por uma questão existencial. Lá em casa nós somos seis irmãos. Estamos todos vivos, com 50 e poucos anos o mais novo. A gente se vê pouco porque moramos em cidades diferentes, mas quando se vê é muito forte. Estamos envelhecendo e uma hora não serão mais seis. 

O livro é dividido em duas partes: antes e depois da perda. Por que fazer essa separação? Queria trabalhar com a celebração da vida, não a morte propriamente dita. Minha ideia é de como lidar com a notícia de quando alguém muito querido vai partir e a pessoa vai se preparar. Ainda há a presença dessa pessoa, mas ela já está se ausentando. Você tem de elaborar essa dor, entendê-la e continuar a vivência. Em outro momento ela não está mais presente e você vai se lembrar dela por meio da evocação. Você vai fazer mergulhos nas memórias mais profundas. Quando você está junto de uma pessoa, por mais que a finitude esteja próxima, você ainda está com ela. Quando ela parte, a sua vida muda, se metaboliza, e isso não é do dia para noite. É preciso ir lá no fundo e conseguir se recompor aos poucos, porque o luto tem um tempo para acontecer.

Você optou também por fragmentar o romance em capítulos não lineares... É como vem a memória. Não dá para lembrar o que você viveu com uma pessoa como um todo. Você vai aos poucos recordando fatos vividos. É meio que um caleidoscópio. O capítulo lá da frente ganha outra força quando lê o capítulo da primeira parte. E o capítulo da primeira parte às vezes é ressignificado por um trecho contado lá na frente. A ideia é que o livro, como uma pessoa, fosse construído aos poucos. 

Em nenhum momento você diz qual é a doença de Mara, embora descreva os sintomas dela. Justamente para não demarcar demais. Quando finaliza o tipo há todo cenário imaginário. Isso não importa. O que importa é que vai acabar, não precisa entrar em detalhes. O que interessava era essa evocação. 

Vivemos tempos difíceis, de raiva. Escrever sobre afeto de certa forma é transformador? É um sentimento muito próprio, do meu momento, de olhar para os meus irmãos. Olhar para as pessoas e pensar que existem coisas boas. O lado social se dá inicialmente na sua casa. Você é um ser coletivo que tem individualidades e isso se aprende em casa, depois com os amigos, vizinhos, as pessoas nas ruas, o mundo. Queria falar sobre entendimento do outro. Como viver as diferenças no mesmo lugar para depois aprender a conviver com essas diferenças lá fora, sem precisar se digladiar porque pensa diferente. Foi uma tentativa de entrar em conexão com o outro. 

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Suas duas profissões, professor e escritor, vêm sofrendo ultimamente. De que forma essa onda de desvalorização da educação e da cultura te atinge? Até nos dá mais força para continuar a luta. Você vai trabalhar de qualquer forma, é da sua natureza trabalhar para salvar a educação. Não se é professor porque se quer, mas porque se deseja aprender e, desejando aprender, você partilha seus aprendizados. Se você escreve, é porque está ali sentindo sua existência e compartilhando com quem está ao redor. E tem o mundo a sua frente. Se tiver uma cerca, você vai. Se não tiver, você vai também, porque a linguagem é o limite. É claro que a gente se preocupa com a questão prosaica, mundana. Pode dificultar formar pessoas com dimensão profunda da existência. Mas ao mesmo tempo aciona nosso mecanismo de resistência. A gente luta não só como professor universitário, mas como cidadão.

O que tem chamado sua atenção hoje na literatura? Tem uma paleta muito colorida, diversa. Tem autores há bastante tempo trabalhando. Vieram outras gerações que estão sendo reconhecidas por prêmios, traduções, em grandes editoras. Há uma pluralidade e uma abertura para as minorias. Vejo literatura da periferia, ascensão de editoras pequenas, que lembram vozes esquecidas, vozes estreantes. Ao mesmo tempo tem a crise do mercado editorial. Tem um mapa se mexendo. Pontos que se acendem, que se apagam. Está tendo movimento – e isso é muito bom. 

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