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Jornalista conta bastidores de quando foi correspondente internacional em livro

Antonio Carlos Seidl entrevistou personalidades como o príncipe Charles e Stephen Hawking em seu tempo na Inglaterra

Por Rodrigo Cavalheiro
Atualização:

Poucos jornalistas têm a sorte de começar a carreira no emprego dos sonhos. Veja-se o caso de Antonio Carlos Seidl. Aos 10 anos, fundou o Jornal Que Sai de Vez em Quando, que marcou época no Rio no fim da década de 1950 pelo jornalismo esportivo independente “com leve tendência para o Fluminense”. Não havia pressão de assessores e anunciantes (seu pai era o único assinante e financiador). O prazo de entrega das reportagens era flexível (a praia era prioridade). E o mais importante, havia plena autonomia criativa – eis a vantagem de ser publisher, editor e repórter. A ironia e o senso de humor usados por Seidl, hoje com 70 anos, para descrever o jornal editado na infância permeiam Do Palácio ao Bordel: Crônicas e Segredos de um Jornalista Brasileiro em Londres. Nesta obra com um quê autobiográfico, ele revisita (e melhora) histórias publicadas numa função quase tão atraente quanto a primeira, a de correspondente internacional. 

Kazuo Ishiguro foi entrevistado por Seidl anos antes de receber o Nobel de Literatura Foto: Andrew Testa/The New York Times

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Seidl ficou entre 1985 e a 1992 na capital inglesa, a serviço da Folha de S. Paulo. Neste período, esbarrou em personagens políticos, econômicos, culturais, esportivos ou culturais que renderam boas informações ao jornal e histórias ainda melhores, só publicadas agora. Na lista estão o baixista Bill Wyman, da formação original dos Stones; Zélia Cardoso de Mello, a ministra que, incompreendida ao palestrar em inglês em Londres, justificou-se dizendo que no Brasil tampouco entendiam seu português; Anita Roddick, a fundadora da loja de cosméticos The Body Shop e defensora da Amazônia, fonte de essências que a enriqueceram; Isaiah Berlin, o filósofo liberal para quem Marx foi um gênio cuja obra aumentou a miséria humana; Nina Temple, secretária-geral do Partido Comunista britânico que fechou orgulhosa as portas da legenda de 70 anos. Também aparecem o cientista Stephen Hawking, o historiador Eric Hobsbawm, Mirandinha (primeiro jogador brasileiro na Premier League) e o príncipe Charles, entre outros.

Nem todos foram entrevistados por Seidl. Hawking, por exemplo, enviou por escrito uma resposta ao jornalista, que questionara (a pedido da Redação, vale ressaltar), se na década de 1990 seria possível viajar no tempo. “Se fosse possível viajar no tempo para o passado, nós já deveríamos ter visto pessoas do futuro. Não acredito que as pessoas do futuro são a explicação dos óvnis”, respondeu. De certa forma, Seidl desafia Hawking em seu livro. Viaja ao passado constantemente para descrever a rotina de um jornalista limitado pela tecnologia do fim do século passado, gastando horas numa transmissão de textos por fax e telex, algo resolvido hoje com um e-mail.

Alguns personagens só alcançaram a consagração após serem entrevistados – caso do britânico de origem japonesa Kazuo Ishiguro, que viria a ganhar o Nobel de Literatura, ou do cineasta Giuseppe Tornatore, ouvido meses antes de ganhar o Oscar por Cinema Paradiso. Outros pareciam ter importância na época e entraram para a constelação dos desconhecidos. Algumas histórias parecem ter sido selecionadas pelo valor afetivo para o autor, outras pela dificuldade para conseguir a entrevista ou mesmo alguma declaração. Como penetra, Seidl arrancou uma frase do príncipe Charles que não configurava lá uma grande revelação, mas era afinal uma declaração do herdeiro britânico. “Vocês têm um presidente mais moço do que eu”, disse sobre Fernando Collor de Melo. 

Com forte foco em bastidores, Seidl condensa conceitos preciosos sobre a atividade jornalística. Explica de forma didática o que faz um correspondente e opina com propriedade sobre “a função mais cara” da redação, que por isso mesmo está ficando mais rara. Escreve o autor: “Para ver sua matéria no alto da primeira página ou em manchetes internas de editorias ou cadernos, o correspondente tem que buscar informações exclusivas. Para tanto, precisa de empenho, valer-se da criatividade, ter fontes diversas, faro, intuição, olhos de escorpião, capacidade de improvisação, conhecimento da história e cultura local e domínio do idioma – e em Londres, ser iniciado no humor britânico (na Inglaterra, diz-se que miolos são opcionais, mas senso de humor é obrigatório). E sorte.”

Sua preocupação em lembrar o que faz um bom repórter torna o livro útil não só para jornalistas, mas também para leitores que ainda confundem a opinião do jornal, publicada nos editoriais, com as reportagens, que devem expor as contradições de um personagem defendido nos editoriais. Neste ofício tão fascinante quanto idealizado, o de correspondente, Seidl enfrentou o que não havia encarado no Jornal Que Sai de Vez em Quando: pressões, prazos apertados e pedidos desorientados de entrevista vindos da Redação. Percebeu, por exemplo, que jornais brasileiros não têm prestígio suficiente para garantir acesso aos mais conhecidos personagens. “Vocês leem jornais no Brasil?”, questionou-lhe um ex-reitor de Cambridge, surpreendido duplamente ao descobrir que não apenas havia jornais, mas impressão em cores.

O primeiro capítulo, um dos melhores, é dedicado a Lindi St. Clair, uma prostituta que decidiu concorrer ao Parlamento britânico. Seidl já havia começado a fazer perguntas sobre aquela candidatura incomum, em entrevista no escritório da campanha (uma sala do bordel mencionado no título do livro), quando um homem “nem jovem, nem velho” tocou a campainha. Ela pediu licença. Atendeu o cliente e voltou menos de 10 minutos depois para concluir a entrevista. “Nós estamos sempre dispostas a dar para eles até uma hora, mas resolvem rápido”, explicou-lhe.

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Que fim teve aquela dona do bordel? Eis o mérito essencial deste livro, que o afasta de uma coletânea de causos. Seidl pesquisou o que ocorreu com quase todos os personagens. Lindi, por exemplo, fracassou em 11 tentativas de eleição, converteu-se ao cristianismo e passou a cuidar de idosos. Charles chegou em 2018 aos 70 anos – ninguém ficou tanto na fila de espera pelo trono britânico. O livro tem uma falha grave, entretanto, algo fácil de corrigir em uma segunda edição. Esclarece o destino dos personagens, mas não revela que fim teve o Jornal Que Sai de Vez em Quando. Se adaptou-se às novas tecnologias, se faliu, ou se teve a sorte de passar às mãos de um neto tricolor, com pouca chance de se tornar um caro e raro correspondente internacional. Livros com histórias preciosas como este, e não é preciso ter o dom de viajar no tempo para concluir isso, já não merecerão resenhas. Eles não serão escritos.

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