Juventude em fúria

Grazielle e S., alunas do ensino médio da E. E. Guiomar Rocha Rinaldi (SP). A tensão entre as garotas era latente. Os meninos incentivaram a briga. Aconteceu o pior

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Por Monica Manir
Atualização:

Era o primeiro ano do resto de suas vidas. Primeiro ano do ensino médio, primeiro ano juntas na mesma escola, primeiro ano no Jardim São Jorge, bairro de classe média-baixa no distrito de Raposo Tavares, zona oeste de São Paulo. Grazielli veio morar ali com o pai e a mulher dele. S. saiu do interior do Paraná para dividir um quarto-e-sala com uma irmã e o marido dela. As duas sentavam na mesma sala de aula, a primeira no fundão, a segunda no gargarejo. Mal se dirigiam palavra. Na semana passada, uma esquina soldou o futuro das meninas. A menos de 50 metros do portão da Escola Estadual Guiomar Rocha Rinaldi, S. jogou gasolina em Grazielli e ateou fogo. S. está recolhida na Fundação Casa, antiga Febem. Grazielli de Oliveira Menequelli está internada na UTI do Setor de Queimados do Hospital das Clínicas. O motivo teriam sido brigas na semana anterior entre S. e o quarteto de Grazi. Na quarta-feira, dia 5, a caminho de casa depois da aula, S. de 16 anos, enfrentou K., também de 16, num clássico embate feminino, com puxão de cabelo e arranhão de ambas as partes. Na quinta, a animosidade deu uma trégua. Na sexta, a coisa esquentou entre S. e T., de 16 anos, também do grupo de Grazi. As duas se pegaram a cerca de cem metros da escola, na Rua Ângelo Aparecido dos Santos Dias, porque S. teria chamado T. e sua mãe de "vagabundas". S. sacou um compasso, que furou a alça da mochila de T. e feriu sua mão esquerda, entre o polegar e o indicador. Pouco à frente, T. encontrou um "estábulo" (estrado) de beliche abandonado na rua e arrancou uma das tábuas compridas. "Fui arrepiando o pau nela", diz T. Bateu uma vez e a tábua quebrou. Em outra a madeira quebrou de novo. Idem na terceira vez. Um motociclista, dos tantos que circulam pelo bairro, tentou apartar e levou a dele também. Até que se aquietaram todos e cada um foi para sua casa. Na segunda, dia 10, antes das 7 da manhã, S. passou como de costume pelo posto sem bandeira na Av. Engenheiro Heitor Antônio Eiras Garcia com a José Porfírio de Souza, quase 1 km longe da escola. Ali quase encheu uma garrafa de plástico, dessas de água mineral de 510 ml, com R$ 0,80 de gasolina. Botou na mochila, acessório que raramente usava. Dentro havia um isqueiro. Às 12h20 a turma de Grazi saiu na frente. S. ficou para trás. Os meninos anunciavam: "Vai ter porrada hoje, vai ter porrada hoje". No entroncamento da Rua Ângelo Aparecido dos Santos Dias com a Relva, uma travessa da favela Operária, Grazi quis saber por que S. a encarou a manhã inteira. Empurraram-se. A galera da escola e da favela incentivava: "Bate na cara dela, bate na cara da vagabunda, não vai arregar pra ela, Grazi". Há quem diga que a garrafa com gasolina já estava na mão de S. desde a saída do colégio. Outros, que só na discussão ela tirou o vasilhame da mochila. Todos, indistintamente, achavam que era suco. Depois de mais empurrões e xingamentos, S. jogou o líquido em Grazi. A gasolina escorreu pelos cabelos loiros e lisos, pelo dorso, pelos braços. Alguém gritou: "Ela tá com álcool!" Grazi deu mais um empurrão em S., que acendeu o isqueiro. O fogo subiu. Grazi rolou pela calçada, se debatendo, enquanto S. abafava as chamas que resvalaram no próprio cabelo. Na entrevista que deu à repórter Marici Capitelli, do Jornal da Tarde, na madrugada do dia 15 para o 16, S. conta que saiu correndo, muito, e ainda assim levou um sem-pulo nas costas, vindo de um menino, que quase a derrubou. As garotas do quarteto de Grazi afirmam que S. saiu andando pela mesma Rua Ângelo Aparecido dos Santos Dias, a ponto de ser pega por I., outra adolescente, que levou uns arranhões de compasso no pescoço, mas em contrapartida arrancou de S. um considerável tufo do cabelo crespo ligeiramente avermelhado. O tufo permaneceu na calçada até o dia seguinte. Voltando à segunda-feira, T. tentava abafar o fogo com o agasalho de Grazi, que chorou e chamou pelo pai, Samuel, até desmaiar. Um casal numa Parati prata levou a adolescente até a UBS (Unidade Básica de Saúde) Jardim São Jorge, onde foi feita uma limpeza breve da pele atingida. O posto de saúde recomendou sua remoção para o Hospital Universitário da USP. Grazi, já lúcida, foi andando até a ambulância. Encontrou o pai no hospital, onde lhe deram medicação que, propositalmente, induziu ao coma. Dias depois foi transferida para o Hospital das Clínicas. As queimaduras de 2º e 3º graus em 22% do corpo a atingiram do umbigo para cima, comprometendo especialmente a traquéia e levando fuligem aos pulmões. Grazi foi entubada. Assim permanecia até o fechamento desta edição, quando se soube que pegara uma pneumonia na UTI. S. foi internada em estado de choque em um hospital do munícípio de Taboão da Serra. Depois se abrigou na casa de amigos da família, que pediu orientação ao advogado Richard Bernardes. Ele disse o seguinte para a garota: ou ela resolvia isso logo, ou esperava até os 21 anos, quando a pena certamente prescreveria. Achou melhor se entregar na última segunda-feira. "É melhor do que ficar escondida e ser tratada como bandida", disse. Uma audiência com o juiz na próxima segunda deve definir seu tempo de internação. Certas de que S. não se entregaria - pelo contrário, voltaria à escola no dia seguinte, se bem que sujeita ao linchamento -, Marizete e Miriam, mães das amigas de Grazi, proibiram as filhas de ir à escola. As mães foram, em momentos diferentes, procurar a diretora. Encontraram a vice-diretora, que deu a mesma resposta a ambas: a instituição não tinha conhecimento de nenhum problema entre as meninas e, por lei, não podia revistar as mochilas dos alunos. "Qual é a segurança que tenho com a minha filha nessa escola?", indaga-se Marizete, mãe de R., a última do quarteto. "Se essa menina tem problemas, deviam ter chamado os parentes dela; não tem que ficar num colégio onde só tem criança normal", sentencia, livremente, Miriam, mãe de T. A 400 METROS? Na quinta-feira santa, a diretora não quis dar entrevista ao Estado. Indicou a diretoria de Ensino Centro-Oeste, da Secretaria de Estado da Educação, que não atendeu os telefonemas. Informações oficiais divulgadas logo após o ocorrido enfatizam que a direção não tem nenhuma responsabilidade sobre o fato e a briga aconteceu a 400 metros do colégio, por isso nada poderia ter sido feito. O líder comunitário Cláudio Freitas carrega uma trena para mostrar que são 46 metros do portão de saída da escola à esquina com a Travessa Relva. "Há indignação das duas partes", diz. "Os conflitos nas proximidades da escola são corriqueiros, a população não consegue falar com a direção e não existe ronda escolar." Ele resgata o caso de uma sobrinha sua, "linda, bonitinha, mas que não gostava de se enturmar". A poucos metros da mesma escola a garota foi cercada por um grupo de 50 alunos, que queria bater nela. "Ninguém é bicho para ficar brigando todo dia." T. afirma que, na mesma quinta-feira santa, uma menina tinha dado uns tapas num menino no meio da aula. Ficou por isso mesmo. S. não era considerada uma garota linda pelos colegas. Nem bonitinha. Um dos moleques da sala a apelidou de Tiffany, a namorada do boneco assassino Chucky. A pecha pegou. "A gente dava risada, ela mesma ria às vezes disso, mas era uma menina estranha", afirma R., da turma de Grazi. S. tinha sua turma também. Uma de suas amigas, aliás, era chamada de Fiona, esposa do Shrek, alcunha de outro aluno. "Os meninos sempre zoam com a gente, eu não ligo, levo na brincadeira, mas ela falava que todo mundo implicava com ela", diz T. S. era vaidosa. Acordava às 5h30 da manhã para se arrumar. Usava o cabelo chapinha sobre um dos olhos, normalmente carregados de sombra escura. Teve um dia em que encampou saia curta, tomara-que-caia e sandália alta, um contra-senso em relação ao jeans, à camiseta e ao tênis dos demais. Perguntaram se ia para um baile funk, evento que não freqüentava. Era da escola para casa, onde abraçava as tarefas domésticas, e da casa para a escola, onde gostava das aulas de artes (quando tinha) e da leitura em voz alta, "com a língua presa". No máximo, dava um passeio com a irmã no fim de semana. O advogado Richard Bernardes a perfila como uma garota introspectiva, abalada pela morte da mãe há dois anos e meio, vítima de câncer. A mudança do Paraná para São Paulo teria interrompido um tratamento psicológico em um posto da rede municipal. "Grazi estava se amando porque conseguiu ser loira", afirma sua mãe, Rosana de Oliveira Teixeira, à porta da lanchonete do hospital. Ela mostra várias fotos plastificadas da filha, pedidas pelos médicos. Cabeleireira, Rosana explica tecnicamente o clareamento das mechas da filha. "Eu puxava o tom um pouquinho por vez desde os 3 anos da Grazi". Só agora, com a filha à beira dos 15, ela permitiu que debutasse na loirice, pois o tom exige cuidado extra. No domingo anterior à segunda fatídica, Grazi ligou para a mãe querendo saber o passo-a-passo da hidratação com maionese. "Para mim, essa menina queria destruir a beleza da Grazielle", diz. Samuel, o pai, concorda: "Todo mundo comentava que a Grazi é bonita, deve ter um pouco de inveja nisso". Grazi tem um namorado, de 18 anos, que não estaria sendo disputado pelas garotas, apesar dos mexericos de gente do bairro, para quem "briga de mulher só pode ter a ver com homem". Um jornal de Osasco apostou em outra manchete: "Garota de 16 anos ateia fogo por causa de cocaína". O advogado Richard Bernardes apela para o "pré-histórico", dizendo que o ato foi desproporcional, mas não gratuito, nem fruto da inveja. "Tem ali um problema familiar, da escola, a perda da mãe", engloba. S. apela para a raiva: "Implicavam comigo, riam de mim; eu nem conversava com elas, sentava longe delas na classe". T., por sua vez, acha que as aulas vagas, sem professor, com os adolescentes perdidos no pátio, a cabeça matutando quem vai xingar, é quando tudo começa. Ela arrisca que a gasolina era para ela, por causa do arranca-rabo na sexta-feira, e que S. estava no limite. "Foi tudo culpa da intriga, os meninos enchiam o saco dela demais!" SEGUNDA, 17 DE MARÇO Adolescente se entrega A garota de 16 anos que ateou fogo com álcool a uma colega de 14, no dia 10, se entregou e foi encaminhada à Fundação Casa, onde pode ficar internada de 6 meses a 1 ano, segundo o advogado. A vítima continua hospitalizada, com queimaduras de 2º e 3º graus.

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