Las Vegas do Caribe

Sob Batista e com a conivência da Casa Branca, o crime organizado americano dominou a capital cubana

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Por Sérgio Augusto
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Havana, 31 de dezembro de 1958. Um réveillon inesquecível. Para os cubanos, para los gringos que lá curtiam mais uma mordomia bancada pela Máfia e, sobretudo, para o presidente Fulgencio Batista. Convencido de que não tinha mais como resistir ao avanço de los rebeldes barbudos comandados por Fidel Castro, o ditador cubano interrompeu a festa, ergueu um brinde, anunciou sua renúncia, desejou boa sorte a todos e embarcou às pressas para a República Dominicana, levando consigo 180 cupinchas e US$ 300 milhões.     Veja também: Nas trilhas da revolução Tratamento de imagem Uma só Cuba? Esqueça: são muitas Uma carcomida relíquia da Guerra Fria O fim de um longo jejum religioso Linha do tempo  A Revolução Cubana nas páginas do Estadão  Debates Estadão: O futuro de Cuba pós-Fidel  O réveillon de 1958 para 1959 foi o "último baile da Ilha Fiscal" do governo Batista, o melancólico desfecho de uma tirania que havia durado 25 anos. Quem viu O Poderoso Chefão 2 tem uma idéia mais ou menos precisa do pandemônio daquela noite, em que também chegou ao fim o poder do crime organizado sobre a economia, a política e a sociedade de Cuba, capítulo fundamental das relações dos Estados Unidos com o continente latino-americano e matéria-prima de um recente e precioso estudo de T. J. English, Havana Nocturne: How the Mob Owned Cuba and then Lost it to the Revolution. Qualquer semelhança entre Hyman Roth, o gângster interpretado por Lee Strasberg no filme de Francis Ford Coppola, e Meyer Lansky, o mafioso que fizera de Havana a Las Vegas do Caribe, não foi mera coincidência. Como a realidade costuma ser mais injusta que a ficção, Lansky não morreu quando Batista escafedeu-se de Santo Domingo para a Espanha, mas 24 anos mais tarde. O primeiro mafioso a estender sua cobiça a Havana foi Al Capone, na década de 1920. Só depois de um encontro de tutti i capi, em dezembro de 1946, na própria capital cubana e com Frank Sinatra animando a noite, o crime organizado consolidou seu monopólio sobre a vida noturna, a jogatina, a prostituição, o mercado imobiliário, a construção civil e o sistema financeiro da ilha. Facilitou-lhe o serviço a ganância incomensurável de Batista, sócio de todas as negociatas; com a conivência da Casa Branca, que tinha sólidos motivos para considerar Cuba um protetorado, um quintal dos Estados Unidos. Desde 1898, quando livrou Cuba do jugo espanhol, até 1959, a América do Norte reinou absoluta naquela região do Caribe. Os presidentes que permitiu fossem eleitos depois da desocupação militar da ilha, em 1902, ou eram frouxos e incompetentes ou tirânicos e corruptos. Mas nem quando eles extrapolaram, desrespeitando direitos humanos e apelando para golpes militares (Batista derrubou o ditador Gerardo Machado em 1933 e o banana Prío Socarrás em 1952), receberam críticas, e muito menos ameaças, de Washington. Eles, afinal, eram úteis aos negócios norte-americanos, à consolidação do que apregoava a última estrofe de um sucesso musical dos anos 1940: o rum e a Coca-Cola workin’ for the yankee dollar (trabalhando juntos para o dólar). O sonho de uma "Cuba libre", acalentado pelos cubanos desde o século 19, degenerou-se num drinque inventado pelos soldados enviados pelo presidente William McKinley para expulsar os espanhóis da ilha. José Martí, morto numa emboscada em 1895, não chegou a ver Cuba livre do secular ocupante europeu, mas alertou para a possível substituição dos espanhóis pelos norte-americanos. Martí, que viveu 14 anos exilado em Nova York, como correspondente do jornal argentino La Nación, foi o maior teórico (e mártir) da luta contra o imperialismo ibérico no Caribe. A transformação do beisebol no esporte favorito dos cubanos foi apenas um detalhe, relativamente insignificante, no amplo processo de colonização cultural da ilha pelos Estados Unidos. Os cubanos entravam com o rum, a cana-de-açúcar, os charutos, a música, as mulheres, e os norte-americanos com investimentos, Coca-Cola, carrões último tipo, prioridade nas rotas internacionais de empresas aéreas – e todo o excedente da produção industrial made in USA. O "quintal" também era um paraíso fiscal e um bordel de luxo. Até o então senador John Fitzgerald Kennedy andou por lá, participando de uma orgia com três call-girls no Hotel Comodoro, a convite do mafioso Santo Trafficante. Tão servil aos putativos governantes da ilha era o ditador Gerardo Machado que chegou a manipular o júri de um concurso anual de danzón, só de ritmos caribenhos, para que o embaixador dos Estados Unidos conquistasse o primeiro lugar. Seu sucessor foi menos descarado na subserviência, porém mais proficiente nos arreglos e mais pródigo nas concessões. Com Batista no poder, o quintal expandiu sua fama internacional, atraindo para seus hotéis faraônicos, cassinos e clubes noturnos um séquito de astros do cinema, estrelas do palco, empresários, políticos, playboys e damas de vida airada. Ginger Rogers inaugurou o Hotel Riviera; Nat King Cole cantou no Tropicana; Tony Bennett no Sans Souci. Até nos nomes de seus templos dedicados à tavolagem e ao entretenimento Havana replicava Las Vegas. O livro de registro de celebridades que se hospedaram do Hotel Nacional de Cuba, apelidado de Castelo Encantado pelo romancista cubano Alejo Carpentier, encheria um catálogo telefônico mais grosso que o de Miami. Sinatra, um dos habitués, lá passou vários fins de semana, inclusive com Ava Gardner, que, apaixonada pela ilha, mas já sem o cantor em sua cama, voltou inúmeras vezes, para se divertir (e tomar banho de piscina au naturel) na Finca Vigía, do amigo Ernest Hemingway. Hemingway foi a mais endeusada figura da Cuba pré-Fidel, depois de José Martí, por supuesto. Visitou a ilha pela primeira vez em 1928. Depois voltou, atraído pela pesca, pelo daiquiri e o mojito servidos no bar Floridita, pela paz para escrever acariciado pela fresca brisa matinal caribenha. Comprou o refúgio de Finca Vigía em 1939, lá viveu 21 anos e produziu seis livros, um dos quais O Velho e o Mar, cujo protagonista foi inspirado num pescador cubano. Circulava por Havana como um grande e sempre solícito senhor. Hospedava artistas de Hollywood, boxeadores, intelectuais e toureiros. Teve problemas com a repressão de Batista e saudou a vitória de Fidel, mas já estava de saída quando los barbudos chegaram. Sua finca, preservada como um santuário, virou museu. Hemingway celebrou seu Nobel de Literatura, em 1954, numa festa patrocinada pelo rum Bacardi. Embora destilado em Porto Rico desde 1937, o Bacardi tem profundas raízes cubanas. Sua primeira fábrica, visionária iniciativa de um imigrante espanhol chamado Facundo Bacardi Massó, surgiu em Santiago de Cuba há 146 anos. Nas mãos de Emilio, filho mais velho de Facundo, a empresa floresceu, internacionalizou seu prestígio e enriqueceu o clã Bacardi, que da ilha só foi embora em julho de 1960, desiludido com os primeiros paredóns e as primeiras medidas repressivas da revolução. É possível contar a história de Cuba através da evolução do império Bacardi, como, aliás, há pouco fez o jornalista Tom Gjelten, em Bacardi and the Long Fight for Cuba. Emilio Bacardi e José (Pepín) Bosch, marido de uma neta do patriarca da família e herdeiro do negócio em 1951, enfrentaram sem rebuços os ditadores de seu tempo. Emilio tinha apenas 24 anos quando participou ativamente da primeira guerra de independência de Cuba em 1868. Era um abolicionista (embora a cultura da cana-de-açúcar dependesse de mão-de-obra escrava), que gostava mais de escrever livros do que beber rum. Bosch pegou o último governo Batista, contra quem conspirou e cuja derrubada festejou. Mas a vereda mais promissora e gratificante da história cubana pré-revolucionária é a musical. Que me desculpem todas as glórias literárias da ilha – como Carpentier, o poeta, escritor e ensaísta José Lezama Lima (que, por ser gay, enfrentou três ditaduras), o poeta Nicolás Guillén, o escritor, jornalista e ativista político Carlos Franqui, criador do legendário suplemento literário Lunes de Revolución, proibido de circular em 1961, e seu comparsa, o grouchomarxista Guillermo Cabrera Infante, outro futuro défroqué da revolução e a quem devemos as mais nostálgicas e criativas evocações da Cuba de cinco décadas atrás –, mas seus maiores batutas se consagraram compondo, tocando ou mesmo cantando aqueles insinuantes ritmos de raízes africanas nascidos ou plasmados no Caribe. Habanera, mambo, rumba, bolero, guajira, guaracha, cha-cha-chá, conga, salsa – tudo isso devemos aos cubanos. A Orestes & Cachao López, que inventaram o mambro em 1939. Ao violinista Enrique Jorrín, que do mambo extraiu o cha-cha-chá posteriormente internacionalizado por Pérez Prado. A Miguel Matamoros, Beny Moré e Olga Guillot, intérpretes inigualáveis do bolero. A Ignacio Jacinto Villa, vulgo Bola de Nieve, o mais sofisticado cantor de cabaré de língua espanhola, o Bobby Short do Caribe. Pairando acima de todos, o supremo gênio musical caribenho: o pianista, compositor e maestro Ernesto Lecuona (1895–1963), o Gershwin cubano, que deixou mais de 600 obras, entre zarzuelas, rumbas, boleros e rapsódias; pelo menos quatro delas (Siboney, Malagueña, Andalucia, Siempre en mi Corazón) sucessos populares fadados à eternidade. Lecuona foi a mais refinada tradução da "alma música", decantada em verso por Guillén: Tengo el alma hecha ritmo y armonía todo en mi ser es música y es canto desde el réquiem tristísimo de llanto hasta el trino triunfal de la alegría.  

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