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Leia introdução de Isabel Loureiro a livro sobre Rosa Luxemburgo

Livro do cientista político argentino Hernán Ouviña oferece uma introdução à vida e à obra da pensadora

Por Isabel Loureiro
Atualização:

O texto a seguir é uma introdução de Isabel Loureiro ao livro Rosa Luxemburgo e a Reinvenção da Política: Uma Leitura Latino-americana, de Hernán Ouviña, publicado agora no Brasil pela editora Boitempo:

A filósofa polaco-alemã Rosa Luxemburgo (1871-1919) Foto: Wikimedia Commons

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Hernán Ouviña, professor de ciência política na Universidade de Buenos Aires emilitante socialista que conhece como ninguém os movimentos sociais da América Latina, mostra seu talento de educador popular nesta ótima introdução à vida e obra de Rosa Luxemburgo, de grande interesse para a militância de esquerda. Ao levar a sério Walter Benjamin e seu “encontro secreto […] marcado entre as gerações passadas e a nossa”, Hernán volta ao pensamento da revolucionária judia polonesa a partir das questões que mobilizam a militância de esquerda posterior à “onda rosa” na América Latina: rejeição do patriarcalismo e do colonialismo, preservação dos modos de vida das populações originárias, Estado plurinacional, questão socioambiental. Mas ele não ignora o núcleo do pensamento político de Luxemburgo, que gira em torno de problemas como a dialética entre reforma e revolução, entre partido e classe, base e liderança, autonomia das massas, defesado vínculo indissociável entre democracia e socialismo. Hernán dá outra vida aosconhecidos textos de Rosa, tornando a leitura prazerosa e fonte de novas desco bertas. Segue o conselho da própria autora que, cansada da monotonia rotineirada imprensa social-democrata, recomendava que o escritor devia a cada vez seentusiasmar e refletir sobre o tema na sua “plenitude, e assim se encontrariampalavras novas para as coisas velhas e conhecidas, palavras vindas do coração edirigidas ao coração”. 

E assim o faz Hernán, tecendo um diálogo instigante de Rosa Luxemburgo  com as práticas políticas da América Latina, desvelando traços da influênciado pensamento da revolucionária polonesa na região. No Brasil, em particular, sabemos que as ideias de Luxemburgo começaram a ser divulgadas por Mário Pedrosa – fundador da oposição trotskista e nosso maior crítico de artes plásti cas – nas páginas do semanário Vanguarda Socialista, editado por ele no Rio deJaneiro de fins de 1945 a meados de 1948. Aí foram publicados alguns dos artigospolíticos mais importantes de Rosa Luxemburgo, com cuja obra Mário tiveraum primeiro contato em Berlim e Paris no fim da década de 1920. No cenárioimediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, quando o pensamento deesquerda era dominado pelo stalinismo, a divulgação do ideário socialista de mocrático, popular e antiburocrático de Luxemburgo tinha o fito de criar umanova esquerda, humanista e independente, tanto da social-democracia quanto dostalinismo. Nesse intuito ele polemiza incisivamente com a concepção leninistade partido-vanguarda centralizado, formado por um pequeno núcleo de revolu cionários profissionais, hierarquicamente separados das grandes massas populares. Contra o que considera o principal responsável pelo definhamento burocráticoda Revolução Russa, o partido-vanguarda, ele toma posição pelo partido-classede Luxemburgo, formado a partir da ação autônoma dos de baixo, tanto na lutacotidiana pela ampliação de direitos quanto para transformar estruturalmenteo estado de coisas vigente. Concordando com sua crítica ao aniquilamento dasliberdades democráticas pelos bolcheviques, Pedrosa argumenta que a falta de liberdade leva à barbarização da vida pública, o que impede a construção do socialismo e a emancipação social. A via régia rumo ao socialismo só pode serpavimentada pela ação livre da grande maioria, politicamente formada na luta, e não por decretos de uma vanguarda iluminada que se põe no lugar das massas. Essa é a primeira lição que Pedrosa tira das ideias políticas de Luxemburgo.  Trinta anos mais tarde, no fim da década de 1970, ele publica um livro sobre as ideias econômicas da nossa revolucionária, A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo. Nessa época, já crítico do eurocentrismo e do desenvolvi mentismo, desencantado com a arte racionalista e admirador da arte indígena,vê na análise de Luxemburgo das formações sociais pré-capitalistas e do seuaniquilamento pelo rolo compressor do capital uma explicação original do capitalismo histórico como processo global. Concorda com ela que a violência do capital não se restringe às suas origens, ao processo de “acumulação primitiva”, mas que o saque e a destruição, quer da força de trabalho, quer da natureza, são necessidades permanentes da acumulação. Mário Pedrosa, ao se apropriarda face terceiro-mundista do pensamento de Rosa Luxemburgo, intui aquilo que 25 anos depois David Harvey chamará de “acumulação por expropriação”.  Por sua vez, Paul Singer, também herdeiro de Luxemburgo, formou-se politicamente com a leitura de Vanguarda Socialista, na qual aprendeu o nexo indissolúvel entre socialismo e democracia que o acompanhou durante a vida inteira. Leitor de A acumulação do capital, obra magna da revolucionária judia polonesa, Singer reconhece que sua grande contribuição teórica foi ter percebido, contra Marx, que nunca existiu um modo único de produção no mundo, masvários modos de produção interagindo entre si. O mundo real analisado porela mostrava formas de artesanato e de pequena agricultura coexistindo com ocapitalismo (mas sobretudo sendo destruídas por ele), o que Singer via comoexemplo iluminador para a elaboração teórica da economia solidária. Não custa lembrar que Mário Pedrosa e Paul Singer, empenhados em criar um partido socialista de massas, enraizado na democracia interna e que lutasse pelos direitosdos trabalhadores e pela transformação estrutural do arcaísmo brasileiro, fizeramparte do núcleo fundador do Partido dos Trabalhadores (PT).  Ainda podemos acrescentar a esses dois casos da recepção brasileira de RosaLuxemburgo Michael Löwy e Maurício Tragtenberg. O primeiro, para além deadepto do ideário socialista democrático enraizado na autoatividade dos subal ternos – ou seja, na soberania popular –, introduziu entre nós uma leitura muitofrutífera da economia política da nossa revolucionária. Argumenta que Rosa, comsua admiração pelas antigas formações sociais não capitalistas e sua rejeição daviolência da modernização capitalista como um capítulo necessário no caminhodo socialismo, aposta numa história aberta à ação humana, dando elementospara criticar a ideia determinista do progresso linear, típica do positivismo. Nopensamento de Rosa Luxemburgo já encontraríamos o germe de uma críticada ideologia do progresso que seria desenvolvida posteriormente por WalterBenjamin. Já Maurício Tragtenberg, com suas análises ironicamente demolidorasdos fenômenos burocráticos, inclusive no campo da esquerda, via em Luxemburgoa mãe das ideias libertárias e antiburocráticas.  Não resta dúvida de que o livro de Hernán Ouviña entronca com essa históriaaqui esquematicamente delineada. Com uma leitura renovada do pensamentoda revolucionária polonesa, ele dá voz a uma nova geração de militantes que seforjou na América Latina nas lutas contra o neoliberalismo, mas também nacrítica aos limites dos chamados “governos progressistas”, acrescentando maisum capítulo à recepção de Rosa Luxemburgo entre nós. 

*Isabel Loureiro é professora aposentada do Departamento de Filosofia da Unesp, campus de Marília, e atual colaboradora da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo. 

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