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Lembranças da ousadia

Pró-revolução, a revista ‘Lunes’ foi uma das aventuras mais inovadoras da imprensa cubana. Pós-revolução, o primeiro caso de censura na ilha

Por Juliana Sayuri | HAVANA
Atualização:

Era madrugada de um domingo de novembro de 1959. Era a vez de Antón Arrufat vigiar o movimento das máquinas e conferir as letras impressas no papel, da meia-noite às 4h. Outro companheiro viria rendê-lo das 4h às 8h, para continuar, como numa trincheira, a defender o ritmo das rotativas. Porque delas sairiam páginas de Lunes de Revolución, uma das mais importantes revistas literárias de Cuba. E uma das mais breves também.

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Lunes estreou em 23 de março de 1959, encartada às segundas-feiras no diário Revolución, do movimento revolucionário 26 de Julho, quase quatro meses após o triunfo dos barbudos liderados por Fidel Castro. Era feita por uma pequena confraria de intelectuais, que às quartas-feiras se reunia para discutir o tempo, o mundo, as letras, num clima de velhos camaradas. 

Uma turma que fumava a valer. Na redação situada inicialmente no número 165 da Calle Carlos III e depois num edifício moderno construído para o vespertino Prensa Libre, ao lado da Plaza de Revolución, em Havana, uns caminhavam ao redor das mesas matutando, outros folheavam fragmentos aleatórios e declamavam parágrafos já impressos, zombavam de publicações prévias grifando com lápis vermelho trechos “terríveis” de inspirações “funestas”, que julgavam antiquados. O editor Guillermo Cabrera Infante, à época na casa dos 30, antes de parir o romance Três Tigres Tristes, fumava um cachimbo e observava a inquietude dos jovens colegas tamborilando os dedos na mesa de madeira. Ela ficava diante de um mural com anotações, fotografias, recortes, um retrato de Hemingway, outros de Sartre, Tchekhov e Buñuel. Ao seu redor, Virgilio Piñera, Rine Leal, Pablo Armando Fernández, Oscar Hurtado, José Alvarez Baragaño, Humberto Arenal, Heberto Padilla, Calvert Casey e Antón Arrufat completavam a equipe de Lunes.

Tudo e nada.Cabrera Infante na redação. O sonho acabou após um discurso de Fidel Foto: EL PAIS

Arrufat tinha 23 anos. Frequentemente embarcava no Nash branco conversível de Cabrera Infante, com quem rondava Havana ouvindo Bach e Félix Chapottin. Às tantas dirigiam até a redação para confabular sobre as edições de Lunes, que, nos melhores tempos, imprimiu mais de 250 mil exemplares. Eram distribuídos gratuitamente nas esquinas e deslizados por debaixo da porta dos cubanos que se despediam do ditador Fulgencio Batista.

Lunes publicou páginas políticas e culturais, entre reportagens, fragmentos de romances, crônicas, críticas cinematográficas e análises históricas. Explorava experimentações vanguardistas, de diferentes tendências intelectuais - arte abstrata, existencialismo, beatniks, futurismo, literatura absurda, nouvelle vague, surrealismo, Borges, Neruda, Picasso, o tal Jack Kerouac. Inspirado no surrealismo, o designer francês Jacques Brouté, primeiro diretor artístico do tabloide, inventou o “R” ao contrário como logotipo e símbolo do magazine. 

Apesar de simpático aos guerrilheiros da Sierra Maestra, Lunes não tinha linha política definida: pretendia-se moderna, eclética e cosmopolita, não dogmática. Bancou a visita de Sartre e seu entourage europeu a Havana em 1960, deu voz a Thomas de Quincey e suas Confissões de um Comedor de Ópio, deu vez a Ginsberg e seu tesão confesso pela ternura de Che Guevara. Num dos primeiros editoriais, imprimiu uma indireta diretíssima aos soviéticos e ao engessado realismo socialista: “Não somos comunistas. Ninguém: nem a Revolução, nem Revolución, nem Lunes de Revolución. Mas nós, os de Lunes de Revolución, hoje queremos dizer, simplesmente, que não somos comunistas. Para poder dizer também que não somos anticomunistas. Somos, isso sim, intelectuais, artistas, escritores de esquerda - tão de esquerda que às vezes vemos o comunismo passar pelo lado e situar-se à direita em muitas questões de arte e literatura”. 

Numa tarde tórrida de maio em sua casa, em Habana Vieja, Antón Arrufat vestia jeans e camisa xadrez com botões abertos. Havana é quente - e o tempo parece não passar. Naquele silêncio, o tique-taque do antigo relógio sobre a cristaleira da sala retumbava como uma metralhadora. Arrufat não tem mais os cabelos castanhos do retrato. Os fios, todos ficaram brancos. Os movimentos lentos para se abanar com um leque de estilo japonês e a pele marcada são cristalinos: o tempo passa, sim. O de Lunes se foi - e Arrufat conta agora 80 anos.

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Lunes despertou discussões calorosas”, ele lembra. Era um folhetim de jovens pequeno-burgueses afeitos a meras provocações, sem compromisso revolucionário. Uns conspiravam que a letra “R” ao contrário era evidência fatal de um símbolo contrarrevolucionário. Che dizia que Lunes se metia a “intelectualismos” fora da realidade. Lembra Arrufat que a redação recebia diversas cartas críticas - uma de suas “preferidas” os acusava de querer se tornar uma elite do poder. “Uma trupe de muchachos principiantes, pobres e tantas vezes mal vestidos?”, brinca, acrescentando que a acusação daria um bom chiste, caso os críticos soubessem o que é humor. 

Era noite de uma sexta-feira de 1961. Fidel Castro se reuniu com diversos intelectuais na Biblioteca Nacional José Martí, para discutir o fuzuê provocado pelo documentário PM, de Orlando Jimenéz-Leal e Cabrera Infante. Endossado por Lunes, o filme experimental tinha apenas 15 minutos e um enredo indiscreto: uma câmera escondida revelava a vida noturna cubana, entre putas, drogas e biritas no porto de Havana. Tempos antes, a capital vivera a famosa noite dos três “P”, com prisões de “pederastas, prostitutas e proxenetas”, o que marcou os primeiros passos da perseguição a gays, travestis e transexuais no país.

O documentário foi proibido pelo Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas (Icaic), que o considerou subversivo, obsceno e contrarrevolucionário. Os intelectuais de Lunes foram acusados de “inimigos”, “cosmopolitas” que disseminavam confusões ideológicas, ideias polonesas e literatura norte-americana e ainda por cima não elogiavam as forças armadas revolucionárias.

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No último dos três encontros na Biblioteca Nacional, Fidel proferiu o discurso histórico Palabras a los Intelectuales, no qual questionava o que deveria valer mais: a revolução iria extrapolar e asfixiar a arte? Ou a inquietação maior deveria ser a própria revolução? Que “perigos reais ou imaginários” ameaçavam o espírito criativo? Ou quais ameaçavam a própria revolução? 

A resposta foi cristalizada, claro, pelo próprio Fidel: “Dentro da revolução, tudo; contra a revolução, nada”. Em oito palavras estava determinada a política cultural cubana, que a partir daí endureceu e limitou liberdades diversas. Lunes foi impressa pela última vez em 6 de novembro de 1961, questão de meses depois do discurso. Diz a versão oficial: faltou papel para continuar a rodá-lo na gráfica. 

Pelo em ovo.À certa altura, até o 'R' invertido do logotipo se tornou inimigo da revolução Foto: REPRODUÇÃO

Os companheiros se dispersaram. Cabrera Infante (1929-2005) foi mandado para Bruxelas, como adido cultural, depois se exilou em Londres. Heberto Padilla (1932-2000) foi preso em Havana, mas, uma vez libertado, partiu para o exílio nos Estados Unidos. Calvert Casey (1924-1969) foi para a Suíça, onde se suicidou tempos depois. Virgílio Piñera (1912-1979) morreu isolado em Havana. Contudo, enquanto os intelectuais se distanciaram, a política cultural cubana se afunilou: o diário Revolución foi fundido com o Hoy, originando o Granma em 1965, que se tornou o órgão oficial do Partido Comunista Cubano.

Arrufat preferiu ficar em Havana. Tornou-se o primeiro diretor da Casa de las Américas, onde arriscou publicar um conto gay e um artigo crítico à URSS. Foi demitido em 1965, e seu nome, riscado da história oficial da revista. Em 1968, recebeu o Prêmio da União de Escritores e Artistas de Cuba pela peça Los Siete Contra Tebas, mas logo depois teve a honraria confiscada. Afinal, acusado de trair os ideais da revolução, era ideologicamente “corrupto”. Como “castigo”, amargou isolamento entre 1968 e 1982: o governo o designou para trabalhar na Biblioteca de Marianao, distante das rodas jornalísticas e do centro de Havana, onde passou as manhãs de 14 anos amarrando com cordas pacotes e pacotes de livros. Ali continuou a escrever escondido depois que encontrou uma máquina esquecida no porão. “Nada contribui mais para a inspiração de um escritor do que a perseguição do Estado”, diz, irônico. 

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Lunes, Padilla, Piñera, Cabrera Infante e Arrufat foram varridos para o esquecimento na ilha. “Por muitíssimo tempo era tabu sequer mencionar intelectuais e artistas cubanos que foram embora do país. Quem dera reconhecer-lhes o mérito”, conta Rafael Grillo, jovem editor da prestigiada revista El Caimán Barbudo, que se pode considerar “herdeira” de Lunes. “Nos 15 anos que tenho como jornalista, umas coisas mudaram, certamente. Hoje se permitem questionamentos sobre a realidade que antes eram inadmissíveis. E certo julgamento crítico sobre a vida cotidiana e o reflexo de certas misérias existenciais. Mas também há muitas coisas que se mantêm intocáveis, como qualquer questionamento aos líderes da revolução, ou a mínima menção à necessidade de mudanças nos esquemas econômicos, a possibilidade do pluripartidarismo ou o reconhecimento midiático dessa parte da sociedade que discorda da postura do governo e almeja outros destinos para o país”, critica.

Por volta de 2000, enquanto vasculhava arquivos na Casa de las Américas e na Universidad de La Habana, a historiadora Silvia Cézar Miskulin, autora de Cultura Ilhada: Imprensa e Revolução Cubana (1959-1961), mais de uma vez ouviu: “Poxa, mas há tanta coisa boa a respeito da revolução. Por que você quer revirar justo a história de Lunes?” Na Biblioteca Nacional, a historiadora encontrou exemplares do magazine, raríssimos, que se despedaçavam a cada página virada. “O que aconteceu com Lunes reflete tensões dos primeiros tempos da revolução, com disputas internas na política e visões diferentes sobre o papel da cultura na revolução”, analisa.

Era manhã de uma sexta-feira de agosto de 2015. A bandeira americana voltara a tremular sob o sol forte de Havana. A orla por onde circulavam Arrufat e Cabrera Infante a bordo do antigo Nash branco agora abriga a nova embaixada dos Estados Unidos, cuja reabertura marcou a retomada de relações diplomáticas por décadas rompidas e as discussões sobre os rumos de Cuba.

Desde Lunes, a ilha agora governada por Raúl Castro decerto mudou. Da censura acirrada nos años gris ao surgimento de blogs independentes e revistas digitais, de diferentes linhas ideológicas - de Yoani Sánchez a Caimán Barbudo -, discussões internas sobre liberdade de expressão reverberaram internacionalmente. E, em diferentes momentos, os antigos autores-tabu de Lunes foram “reabilitados” pelo governo. A maioria, in memoriam. 

Neste agosto, Arrufat teve seu 80º aniversário celebrado com edições de diversos de seus livros. Antes, recebeu os principais prêmios literários do país - entre eles, o Prêmio Nacional de Literatura, a maior medalha literária da ilha. Ainda era maio quando ele me abriu a porta de sua casa repleta de estantes e cadeiras de balanço antigas. Naquele dia, dedicava-se a revisar alguns manuscritos. “Liberdade? Há, até certo ponto. Mas o escritor precisa se atrever sempre”, disse, brevemente. “Parar de escrever? Jamais. Se parasse, você me veria caminhar ali para as escadas, sair e desaparecer. Parar é morrer.”

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