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Lendas em campo

Final de League of Legends na Arena Palmeiras reuniu 12 mil fãs de um game em que ainda se mata e morre na arena - e dá o maior status

Por Leonardo Ávila Teixeira
Atualização:

É mais um fim de tarde na sala de imprensa da Arena Palmeiras, em São Paulo. Jornalistas se agrupam sob o teto baixo desviando das câmeras de TV, que já criam uma pequena barricada no fundo da sala. Procuro um assento enquanto os atletas do dia se aconchegam no palanque e me delicio com a cena à minha frente: me diga, você já viu uma entrevista coletiva pós-partida em que os jogadores parecem menos exauridos do que quem aponta os microfones? Os cinco garotos que encaram o paredão de gravadores, câmeras fotográficas e filmadoras com olhares fugidios parecem ter saído da rodada final de um vigoroso e elétrico ataque. Seus uniformes não vêm em cores vibrantes, tampouco são decorados por nomes de bancos ou grandes estatais. Debaixo do palanque, por sinal, jeans e tênis simples, sem quaisquer modificações esportivas.

Os atletas em questão fazem parte da agremiação paiN Gaming, e disputaram no sábado retrasado a final nacional de League of Legends, um jogo para computador lançado pela companhia californiana Riot Games em 2009 que não só tem virado um fenômeno cultural - movimentado por um fluxo médio de 27 milhões de usuários por dia - como também já traz lá seu gosto de modalidade olímpica. Pelo menos no que se trata de marcos históricos, agora não sobra muito o que desdenhar: afinal, graças a League of Legends, a primeira taça a ser disputada no estádio foi levantada por mãos treinadas e disciplinadas por mouses e teclados. 

A batalha.Num cenário com três telões, partida foi antecedida por orquestra sinfônica e banda de heavy metal Foto: LEONARDO ÁVILA TEIXEIRA

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O embate foi barulhento e cheio de excessos, como costuma ser com a modalidade. Uma massa de entusiastas lotou parte da Arena Palmeiras para assistir a três telões, responsáveis por exibir a peleja digital em tempo real. Dava para ver claramente o resto do pomposo gramado atrás de longas faixas de tecido preto, mas a atenção estava voltada para o palco, uma construção enorme, algo que o Hans Donner esculpiria no meio de um deserto nuclear. Enfeitada com luzes e detalhes em vermelho e azul - as cores tradicionais de cada um dos dois times -, a geringonça era capaz de expelir colunas de fumaça e a ocasional labareda de fogo. Ao meu lado, um assessor fazia questão de passar as dimensões do espetáculo: “Vê o telão principal? 20 m x 11 m. Os dois menorzinhos do lado deste? 16 x 9. Sem falar do que foi necessário para conectar tudo, dos displays às luzes e à pirotecnia: um mundo de 40 km de cabos”.

Se o cenário parece digno de um festival de rock, acredite, você está no caminho certo: esses garotos são estrelas, meu amigo. Cada vez que um deles dava a cara em telões durante a etapa pré-jogo, um barulho ensurdecedor ecoava pela plateia de 12 mil pessoas. League of Legends, por sinal, tem sua própria vuvuzela: um par de balões em formato de bastão revestidos com um plástico firme que, batidos incessantemente um contra o outro, gera um contínuo baque seco, um “thump, thump, thump” quase insuportável. Bruno Gonçalves, o brTT, atacante da paiN, cyber-atleta de 24 anos, que até há pouco estava sentado na sala de imprensa, compenetrado em descascar o papel-alumínio de um copo d’água, inspirava gritos com sua presença assustadora em campo e levantava a plateia a cada proeza violenta, como se estivesse dedilhando um solo de guitarra escalafobético. E, se a comparação com rock stars ainda não ficou completa, então vale salientar: ambos os times, paiN Gaming e INTZ, tiveram até show de entrada, com direito a orquestra sinfônica, coral formado por fãs e a presença da banda de heavy metal Pentakill despejando guturais impronunciáveis - e que, por sinal, é tão parte da folha de pagamento da Riot quanto os desenvolvedores do jogo em si. Esse ar de espetáculo percorre a cultura de League of Legends de ponta a ponta. No meio do barulho da final, quando perguntei a uma jovem de braços tatuados e olhos finos cerrados no palco o que a levou até ali, a resposta foi reveladora: não foi o jogo, mas sim o atleta da INTZ, Felipe Zhao, o Yang, presença diminuta à frente de um dos monitores sob a sombra imponente do telão. 

É inevitável que, como jornalista, um dia, em algum lugar, você ouvirá de alguém algo não prontamente crível. É parte da magia da carreira. Lembro, por exemplo, estar em um carro na Marginal do Tietê em um dia quente de outubro, feito ainda mais abafado pela ocupação completa do pobre compacto por cinco pessoas. Três delas eram cyber-atletas a caminho de uma apresentação no Expo Center Norte. Apesar do desconforto - devia ter feito amizade com a comissão olímpica de nado crawl -, a conversa logo tomou um rumo interessante. O ainda granular cenário competitivo de League of Legends, em que um novo time parece surgir ou se dissolver de três em três meses, coloca uma pressão muito particular para jogadores que querem se profissionalizar. Se você não está em times grandes como paiN e INTZ, é possível que sua posição não seja nem das mais seguras, nem das mais rentáveis.

No bojo disso cresceu um pequeno mercado curioso: jogadores “alugam” talentos de League of Legends para jogarem em seu lugar e, assim, aumentarem seu ranking no game. A Riot abomina essa prática, já que povoa o alto escalão de League of Legends com gente que não está pronta para o desafio, e assim dificulta a vida dos mais dedicados. Um serviço desses, porém, pode gerar uma renda mensal de R$ 3 mil para um cyber-atleta. Por que pais - um dos maiores consumidores do serviço - pagariam por algo tão insípido quanto o ranking de um videogame para seus filhos, ainda mais sob o risco de punir um atleta? A resposta veio sem titubear do rapaz sentado no banco do passageiro naquele dia de outubro. Ele comemorava sua volta ao certame depois de jogar para outros: entre os mais jovens, ser bom em League of Legends é um status e tanto, um jeito de se enturmar e se afirmar entre colegas de escola.

Nunca de fato arranquei essa dúvida da cabeça. Quando acompanhava a algazarra da arquibancada durante a primeira rodada da série, ela voltou. Talvez seja isso mesmo: League of Legends é um status. “Engraçado como o jogo não é o que parece”, me confidenciou Felipe Santana Felix, jornalista especializado na área, algo em torno de meia hora rodada adentro, quando o placar digital no horizonte superior do telão marcava franca diferença entre os times, embora a partida seguisse disputada momento a momento.

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League of Legends é diferente de outros jogos de computador com viés competitivo, que ora envolvem tiroteios entre grupos paramilitares de faz de conta, ora trazem gladiadores de rua se engalfinhando sob o olhar estranhamente aprovador de transeuntes quadriculados. Ainda se mata e morre na arena virtual de League of Legends, mas as fatalidades servem apenas como desfalques temporários no campo de batalha. O objetivo principal é atravessar o mapa e destruir a base adversária do outro lado, algo que cada time de cinco jogadores tenta alcançar eliminando obstáculos pelo caminho e assumindo posições definidas na arena, como se estivessem numa pelada. É um jogo territorial, não muito diferente do futebol americano, o que explica o ocasional frenesi da plateia mesmo durante momentos em que nada é efetivamente destruído.

As bases de cada time são conectadas por três rotas que os atletas usam para se locomover de um lado a outro, porém no meio delas há uma série de pequenos labirintos - a Selva -, onde jogadores podem matar monstros atrás de dinheiro e pontos de experiência. Há uma economia subterrânea em League of Legends que frustra qualquer comparação com um esporte tradicional, mas que está no coração do jogo: por meio de ouro e experiência, os atletas aprimoram seus personagens, ganhando vantagens estatísticas essenciais. Embora esses dois recursos tendam a valer menos à medida que o tempo passa (já que há um número fixo de itens e habilidades a investir em uma dada partida), é certo que um time capaz de forçar uma diferença de renda logo nos primeiros minutos do jogo domine o round. 

É um jogo tão técnico e complexo que a ocasional burocracia por trás de suas regras não só é tolerada como aplaudida. Antes de cada rodada, os times decidem que personagens vão representá-los e definem outros seis que nenhuma das duas equipes poderá escolher. É um elemento de balanço tático delicioso: cyber-atletas e os técnicos que os acompanham tentam forçar a mão dos oponentes sem minar sua própria estratégia, e a decisão nessa etapa não raro gera repercussões sísmicas na hora da peleja. Na prática? São minutos de menus monótonos no telão enquanto um cinegrafista claramente cansado aposta em closes dramáticos na cara de jogadores e em lances de câmera que parecem ter saído de uma versão de baixo orçamento de Os Bad Boys. E, de alguma maneira, isso funciona: cada ovação da plateia parece reforçar um rito secreto, um diálogo entre os espectadores e os movimentos sutis, mas explosivos, do chato cardápio de personagens. 

Divertido notar a surpresa de colegas jornalistas sobre o fenômeno. E perfeitamente compreensível: ele parece ter surgido do nada. Diferentemente de outros heróis da juventude, a fama desses garotos não passa por grandes gravadoras, conglomerados midiáticos ou emissoras. Ela nem sequer trafega pelo espaço comum dessas instituições, atravessando unicamente o universo da Wide Web. E por lá acontece algo único: você pode acompanhar esses atletas diariamente, seja nas páginas de Facebook que mobilizam centenas de milhares de fãs, seja vendo-os jogar ao vivo no Twitch, canal online de jogos movimentado por algo em torno de 11 milhões de transmissões mensais, muitas das quais partidas de League of Legends. 

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Há uma notável cumplicidade escondida no entusiasmo da plateia. Alguns fãs vieram inclusive trajados como personagens do jogo. O que não é de estranhar: grosso modo, dá para linkar as origens de League of Legends ao impacto da crise do won em 1997 na Coreia do Sul, quando jovens desempregados em massa viram em cyber cafés - dominados na época pela febre do StarCraft, outro jogo da também californiana Blizzard, e alimentados por um boom da indústria de banda larga local - um entretenimento de baixíssimo custo. Paixão rapidamente virou profissão para os mais experientes. Foi o germe de uma modalidade que hoje movimenta na Coreia do Sul uma mega indústria de eventos, merchandising, emissoras de tevê e escândalos milionários. Por sua vez, o jogo da Riot, denso que seja, é um passatempo admiravelmente democrático. League of Legends é gratuito e leve o bastante para rodar em laptops mais acessíveis. Virar um craque digital não é um sonho tão distante assim para essas milhares de pessoas e seu “thump, thump, thump” insistente.

Falar de cyber-atletas competindo em jogos mais cerebrais que físicos em uma arena digital pode parecer futurista. Algo que você acompanharia de uma projeção holográfica portátil dirigindo um carro voador pela Neo-Rebouças, enquanto enormes letreiros da Sanyo flutuariam translúcidos no horizonte, saídos direto de um parágrafo do Neuromancer. Mas esses são os esportistas de agora, e o fim de tarde no antigo Parque Antarctica foi algo cheio de não-primeiras-vezes. Não é de agora que League of Legends é disputado em um estádio: a final nacional de 2014 foi decidida no seio do Maracanãzinho; não é a primeira arena a ser cedida para cyber-atletas: no ano passado, as finais do Mundial aconteceram no Sangam Stadium, uma das paradas da Copa de 2002; e não, não é inédito que cyber-atletas se reúnam com jornalistas em conferências abarrotadas, nem foi sequer a primeira que acompanhei, embora, na final brasileira de 2013, ainda me lembre de uma organização que precisou do equipamento de jornalistas para montar a infra da coletiva.

Nesse meio tempo, a modalidade ganhou pose e circunstância reservadas às Coisas Sérias da Vida. Na final de dois anos atrás, quando a decisão se apresentava como iminente, fotógrafos puderam invadir o palco junto com os cyber-atletas e registrar a eletricidade das cadeiras vazias, os abraços calorosos entre colegas, os apertos de mãos entre rivais e a catarse final da vitória. Enquanto corria para pegar algumas fotos do momento, havia em mim essa inegável sensação de que não só os atletas levantando a taça, mas também o público e os jornalistas, todos estávamos, de alguma maneira muito particular, quebrando a banca. Pouco importava se aquilo que estava encerrado em telões e computadores era, de fato, um esporte. E pouco importa hoje. O espírito está lá. Enquanto os jogadores da paiN levantam da sala de imprensa seguidos de organizadores com cara séria, gloriosos com o 3 a 0 em cima da INTZ, multidões deixavam o estádio. A noite se deitava sobre a Barra Funda, ainda interrompida por flashes: eram os cyber-atletas de outros times que vieram, uniformizados, acompanhar a final, posando para fotos com fãs enquanto tentavam sair da multidão. League of Legends, cara, é mesmo status.

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