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Leonard Mlodinow alerta para o perigo do pensamento rígido

Divulgador científico mostra como ter a mente aberta e flexível pode ser benéfico

Por Elias Thomé Saliba
Atualização:

Seres de outro planeta, chamados Kanamitas, falando uma língua desconhecida, pousam na terra, conseguem se comunicar por telepatia e garantem aos humanos amedrontados que seu único propósito é ajudar a humanidade. E realmente melhoram as coisas em todos os campos, principalmente na agricultura, e ainda presenteiam os terráqueos com um livro escrito no idioma kanamita, do qual os criptógrafos conseguem decifrar apenas o título: “Para Servir ao Homem”. No final da história, quando um grupo de humanos otimistas é convencido a conhecer o planeta Kanamita, é que uma criptógrafa consegue decifrar o conteúdo e alerta aqueles prestes a embarcar: “Não entrem, é um livro de receitas!”. A moral da fábula é simples: “não existe almoço grátis, a não ser que você seja o almoço”. Esse episódio, colhido de uma antiga série de TV, Além da Imaginação, é um, entre muitos exemplos pitorescos utilizados por Leonard Mlodinow para analisar, em seu novo livro, as promessas, limites e perigos que enfrentamos em face da recente avalanche de novidades. 

O divulgador científico Leonard Mlodinow Foto: Martin Haburaj

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Embora escrito em linguagem direta e simples, o livro é um verdadeiro elenco de todos os tópicos do pensamento flexível – que é aquele que nos confere a capacidade de resolver novos problemas e superar as barreiras neurais e psicológicas que nos impedem de enxergar além da ordem existente. E as barreiras são muitas, sobretudo porque o lado criativo do nosso pensamento é subutilizado. Primeiro, porque ele não é algorítmico, ou seja, chegamos às novas ideias e soluções sem definição clara dos passos necessários para se chegar lá. Segundo, porque o pensamento flexível só sobrevive naquilo que tecnologia digital nos priva cada vez mais: o tempo ocioso – já que o bombardeio constante de uma única atividade, exigindo uma concentração excessiva, bloqueia o nosso lado mais criativo. Mary Shelley jamais teria inventado a criatura de Frankenstein, numa noite de 1814, se tivesse um telefone celular. Ela nunca imaginou que experimentaríamos esta explosão da seta do tempo, um presente eterno, no qual as relações humanas deixaram de ser presenciais e os lugares transformam-se em redes, fluxos ou nuvens.

Quando a neurociência estuda o pensamento cristalizado, ela demonstra que o que nós já sabemos pode restringir em muito as possibilidades daquilo que conseguimos imaginar: é a “cognição dogmática” – uma tendência de processar informações de uma maneira que reforça a opinião prévia ou a expectativa do indivíduo. Mas não é preciso aceitar tudo o que a neurociência comprovou como se fosse uma novidade absoluta. “Quando uma minhoca encontra um rabanete picante, ela acha que não existe nada mais doce.” Esse é um antigo ditado iídiche que Mlodinow utiliza como mote para exemplificar como certas barreiras mentais nascem do excesso de saber especializado. Ancestrais doutrinas taoistas já aconselhavam a praticar um estilo de pensamento diametralmente oposto à cognição dogmática – a “mentalidade de principiante” – ou seja, a capacidade de reconhecer situações rotineiras como se fossem inéditas, sem suposições automáticas baseadas em experiências passadas. Neste caso, o especialista ideal (em qualquer área) é aquele com grande profundidade de conhecimentos, mas que continua mantendo boa parte da sua mentalidade de principiante. As crianças são pensadoras elásticas por excelência e a espontaneidade e imprevisibilidade tendem a esmaecer quando ficam adultas, pois dentro de todos nós convivem redes neurais tanto de uma criança brincalhona e imaginativa quanto a de um adulto racional e autocensurado. 

Claro que a vocação mais saliente da personalidade elástica é a dispersão em atitudes e manias muitas vezes inusitadas. Depois que o médico o proibiu de fumar cachimbo, Einstein catava tocos de cigarro na rua para cheirá-los. Newton chegou a realizar uma análise matemática da Bíblia em busca de dicas sobre a data do fim do mundo. Mas a contemplação sem propósito só funciona bem naquelas personalidades elásticas, que conseguem usar o cérebro executivo para filtrar as divagações e as excentricidades, selecionando apenas o comprovável pela experiência. No relato de muitos experimentos, incluindo os fracassos, Mlodinow mostra que em nosso cérebro competem duas maneiras de tratar a realidade: a do cientista – que reúne evidências e forma algumas teorias que expliquem suas observações – e a do advogado – que parte de uma conclusão da qual quer convencer os outros, depois busca evidências que o apoiem, enquanto tenta desacreditar evidências que estejam em desacordo. Embora nossos cérebros odeiem descobrir que estão errados, experimentos mostraram que o dissenso não apenas muda nossa opinião em relação a um assunto em pauta – ele também age para flexibilizar o pensamento cristalizado em contextos fechados. Infelizmente, os que mais sofrem da doença da cognição dogmática relutam em ouvir opiniões contrárias. O efeito mais raso dessa doença é o preconceito, ou seja, a tendência incorrigível de dividir o mundo em “nós” e “eles” – de acordo com padrões que não existem, escolhermos provas que reiterem nossas crenças e nos encaixarmos nos grupos que confirmem a autoconfiança na própria superioridade. É aí que se inicia a festa da intolerância. Aqui a neurociência não precisa fazer experimentos, basta dar uma olhada no que circula nas redes sociais. 

Pensar quando você não está realmente pensando, expor-se ao contraditório, explorar o inusitado, ver antes de acreditar – Mloninow é muito convincente em demonstrar que abrir-se ao pensamento flexível significa, sobretudo, desligar o piloto automático dos nossos eficientes (e saturados) processadores de informação e apostar num estilo cognitivo não linear. Mas nesta atmosfera digital na qual todos mergulhamos – e como no episódio dos Kamanitas – não seria tarde demais para, deixarmos de acreditar em almoço grátis?  *Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor de 'Crocodilos, Satíricos e Humoristas Involuntários: Ensaios de História Cultural do Humor' 

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