Leonid Andreiev, mestre da literatura russa, tem textos inéditos lançados no Brasil

Escritor viveu em época de crises, foi sucesso de leitores e repudiado por críticos por trazer inovações estilísticas

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Por Gutemberg Medeiros
Atualização:

Apesar de conto seu publicado em 1919 na revista carioca Leitura Para Todos, o russo Leonid Nicolaievich Andreiev (1871-1919) foi pouco editado no Brasil, sendo bem menos ainda diretamente do original. Um dos principais autores de seu país, profundo leitor de Dostoievski, agora ganha no centenário de sua morte a mais ampla coletânea de textos inéditos – 18 contos e novelas e uma peça de teatro – já publicada em tradução direta por Helena Kardash (Orel Books Editora).

Leonid Andreiev pintado por Ilya Repin Foto: TRETYAKOV GALLERY

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O escritor viveu em rica época de tensões e crises, inclusive três revoluções, foi sucesso de leitores e repudiado por críticos por trazer inovações estilísticas muito além de qualquer “ismo” antecipando em anos carpintarias literárias do século 20. A seleção tem como mérito proporcionar ao leitor uma perspectiva da trajetória de Andreiev com textos de 1899 a 1916. 

Sua prosa e teatro têm elementos emergentes do realismo, simbolismo, expressionismo e outros. Como sintetizou a tradutora em consistente introdução, “Andreiev passou pelo conto convencional, pelo modelo de diário, pela narrativa em primeira pessoa, pela narrativa fantástica, pela adaptação de narrativas bíblicas, hagiografia e outros. Os assuntos que abordou vão do bíblico ao sexual, do histórico ao contemporâneo, do concreto ao abstrato.” 

A qualidade da tradução e do conhecimento profundo do autor não deriva apenas do fato de Helena Kardash ser graduada no Curso de Russo da USP. Filha de imigrantes desse país, desde a infância a mãe lia as histórias de Andreiev no original, mesmo as com teor mais sombrio.

“Meu caro amigo, sou um decadente, um degenerado, um homem doente. Mas Dostoievski também era um homem doente, como o são todos os grandes homens.” Assim Gorki registrou depoimento de Andreiev em ensaio memorialístico todo dedicado ao colega e grande amigo. Nesta passagem, o contista faz eco à famosa abertura de Memórias do Subsolo.

Andreiev foi prosador, dramaturgo, crítico, jornalista, pintor e fotógrafo. Leitor compulsivo desde a infância, aos 20 afirmou ter conhecido toda a literatura russa e estrangeira, esta em traduções. Apear de publicar a sua primeira coletânea de contos em 1892, ele considerou seu real início em 1997 ao trabalhar em jornal fazendo reportagens e artigos satíricos. Além de Dostoievski, apontava entre seus mestres Tolstoi e Schopenhauer, especialmente envolvido nas questões de ordem ética. De família humilde, passou por sérias dificuldades chegando a passar fome, e trouxe este subterrâneo para o espaço literário.

Derivado nesta base, ao longo de sua trajetória se dedica às pequenas e nada banais tragédias cotidianas das pessoas humildes. Assim como Dostoievski e o melhor da tradição russa, era filho de O Capote, de Gogol. O que o move em seus contos e teatro é o ímpeto antiburguês, onde o leitor se sente identificado com um estado de alarme contínuo, de mal estar generalizado e sempre à beira de uma tragédia. Por várias vezes a crítica o atacou, tendo em vistas as suas ousadias formais para a virada do século, por escrever de forma não sofisticada.

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Em contrapartida, era bem avaliado por Chekhov e Gorki que, desde seu começo, o viam como uma das grandes promessas da literatura russa. O que se cumpriu de fato. Como bem observa a tradutora em texto introdutório, a “heterogeneidade de estilos, a abordagem ousada de temas tabus, o interesse pela psicologia e pelas questões sociais tornaram sua obra um reflexo do turbilhão de ideias revolucionárias que tomou a Rússia do início do século 20”.

Entre suas máximas realizações estão O Riso Vermelho (1904) ambientado na guerra russo-japonesa baseado em relatos reais em protesto ao banho de sangue em prosa das mais refinadas. A mesma elaboração foi alcançada com Os Sete Enforcados, veemente protesto contra a pena de morte e onde expõe sua postura dualística entre o fracasso inevitável de qualquer revolta política e a simpatia pelo personagem do revolucionário em seu tempo. Em função destas posições, tornou-se completamente refratário à revolução bolchevique e faleceu em autoexílio voluntário na Finlândia. Para os leitores de Dostoievski, esta é a oportunidade de conhecer outro autor que parte do mestre, mas com voz completamente original e atual.

*GUTEMBERG MEDEIROS É PESQUISADOR, PROFESSOR, MESTRE E DOUTOR PELA ECA/USP E PÓS-DOUTORANDO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA NA PUC-SP 

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