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Lévi-Strauss: 'O canibalismo é recorrente em todas as sociedades'

Antropólogo, que viveu no Brasil e lecionou na USP, tem seu livro 'Somos Todos Canibais' relançado

Por Sérgio Medeiros
Atualização:

Da reunião de artigos escritos para o jornal italiano La Repubblica entre 1989 e 2000 nasceu o livro Somos Todos Canibais (Editora 34), sem dúvida um dos mais acessíveis e divertidos de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que sai agora em tradução de Marília Scalzo. Os assuntos tratados pelo autor não perderam o interesse, como, para citar um dos mais atuais, o transplante de órgãos. No ensaio que dá título ao livro, o transplante é associado ao canibalismo, conceito amplo que não se reduz a uma “refeição macabra”. O canibalismo, assim, é corriqueiro em todas as sociedades e pode ser descrito como a prática “de introduzir voluntariamente, no corpo de seres humanos, partes ou substâncias provenientes do corpo de outros seres humanos”. Aliando sua vasta erudição a uma boa dose de ironia, Lévi-Strauss procura ser didático o tempo todo, deleitando-se ao expor teorias “exóticas”, saídas de universidades do eixo euro-americano. Por isso mesmo, a leitura de Somos Todos Canibais é mais do que indicada a quem está entrando em contato pela primeira vez com a obra desse grande antropólogo nascido na Bélgica, mas radicado na França. 

Gravura mostra o explorador alemão Hans Staden como testemunha da rotina canibal no século 16 Foto: Domínio público

Quando jovem, Lévi-Strauss residiu quatro anos no Brasil (de 1935 a 1939, lecionou na USP) e visitou aldeias indígenas no Centro-Oeste e no Norte, sobre as quais escreveu numerosos ensaios, hoje considerados clássicos como, por exemplo, os reunidos nas Mitológicas, cujo segundo volume, Do Mel às Cinzas, acaba de ser publicado pela Companhia das Letras.  Um traço marcante dos artigos agora traduzidos é a importância que a cultura indígena assume nas reflexões do autor. Como ele mesmo afirma, o “desvio para as Américas” caracteriza a quase totalidade dos textos, quer o tema seja a origem da linguagem, quer os estudos de gênero. Como todos sabemos, o último tema enseja, ainda hoje, no Brasil e alhures, acalorados debates, dentro e fora das universidades. Nos tempos antigos as mulheres mandavam nos homens, segundo narram alguns mitos e querem acreditar certos teóricos; citaria o mito de Jurupari (que não consta do livro), o enviado do Sol que restabeleceu o patriarcado na Amazônia depois que as mulheres, num ato de rebeldia sem precedentes, tomaram o poder. Lévi-Strauss mostra que, em todos os lugares, os homens sempre estabeleceram sua dominação: “Atribuindo-se aos mitos uma verossimilhança histórica, ignora-se o fato de que eles têm como função principal explicar por que as coisas são como são no presente, o que os obriga a supor que essas mesmas coisas fossem diferentes antes.” Ou seja, o matriarcado pode ser considerado uma ilusão, e os mitos que o descrevem apenas o fazem para negá-lo e confirmar que o direito pertence aos homens. Essa não é uma teoria construída e defendida pelos estudos de gênero, com os quais o famoso antropólogo passa então a debater, detendo-se sobre o papel atribuído às diferenças entre os sexos na vida das sociedades.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss, que viveu no Brasil estudando as tribos indígenas Foto: Editora Zahar

A partir dessa discussão o ensaísta resume as indagações sobre a perda do cio (isso aparece ora como vantagem, ora como inconveniente) e a aceitação do casamento monogâmico, que fomentaram teorias sobre a sexualidade feminina e a origem da cultura, tanto nos Estados Unidos como na Europa. “Quando os humanos começaram a formar sociedades verdadeiras”, escreve Lévi-Strauss, “surgiu o perigo de que cada fêmea no cio atraísse todos os machos. A ordem social não resistiria. O cio tinha de desaparecer para que a sociedade existisse.” Nesse resumo, a teoria parece rude, mas se apoia num argumento sedutor, segundo o antropólogo, que não costuma jogar fora ideias sem antes discuti-las seriamente. Com o fim do cio, “os odores sexuais não desapareceram totalmente. Deixando de ser naturais, puderam tornar-se culturais. Seria essa a origem dos perfumes, cuja estrutura química continua muito parecida com a dos feromônios orgânicos – ainda hoje, os ingredientes que os compõem têm procedência animal”. Submergido pelos caprichos dos elaboradores de teorias, o curioso Lévi-Strauss quase perde a paciência e então desabafa: “Sente-se tontura diante de tantas interpretações contraditórias, que se destroem mutuamente.”  Por isso ele pede aos teóricos um pouco de prudência, seriedade e rigor, sobretudo quando discutem o salto decisivo que a humanidade deu ao separar-se da animalidade. Mas, se a chave da cultura não está na fisiologia (ou na perda do cio), poderá estar na linguagem articulada. Lévi- Strauss destaca o fato de que o código genético e o código verbal operam com unidades discretas em número finito. Ele conclui que “a aptidão do homem, durante a infância, para manejar as estruturas linguísticas deve necessariamente resultar de instruções codificadas em sua célula germinal”. As coisas interessantes a respeito da evolução humana, sentencia ele, aconteceram no cérebro, e não no útero ou na laringe.

Lévi- Strauss destaca o fato de que o código genético e o código verbal operam com unidades discretas em número finito

Afirma-se, por exemplo, que o homem de Neandertal (predecessor do Homo sapiens) não tinha linguagem articulada por causa da conformação de sua laringe e sua faringe. Observa o antropólogo: “Atrás dessas vãs tentativas de assegurar bases orgânicas simples para atividades intelectuais complexas, pode-se reconhecer um pensamento cegado pelo naturalismo e pelo empirismo. Quando faltam observações capazes de fundamentar uma teoria – o que é sempre o caso, esse modo de pensamento as inventa.” Nos artigos de divulgação científica atuais, fala-se que pregas vocais mais simples são a explicação para a origem da linguagem articulada. Na época de Lévi-Strauss, essa teoria ainda não havia sido propalada aos quatro ventos, mas ele já havia exposto seu ponto de vista: “A origem da linguagem não está ligada à conformação dos órgãos fonadores. É na neurologia do cérebro que deve ser procurada.”

A princesa Diana, em foto de junho de 1997, é tema de novo documentário Foto: John Stillwell/ Reuters

A teoria do cio, comentada aqui, pode ser complementada com outro artigo de Lévi-Strauss, no qual ele discute o sistema familiar ocidental a partir do casamento da “plebeia” Diana com o príncipe Charles. “A intensa emoção provocada no mundo inteiro pela morte da princesa Diana explica-se”, de acordo com a sua leitura estrutural, que propõe analogias entre épocas e civilizações distintas, “pelo fato de que o drama instalava a personagem no cruzamento de grandes temas folclóricos (o filho do rei que se casa com uma plebeia, a sogra malvada) e religiosos (a pecadora condenada à morte e que redime com seu sacrifício os pecados dos novos convertidos).” O artigo cita o conde Spencer, o irmão de Diana, que fez uma declaração durante os funerais. Nessa ocasião, ao assumir publicamente o papel de irmão preocupado com a educação dos filhos da princesa falecida, ele teria, com esse gesto, demonstrado o quanto o tio é peça importante na estrutura familiar e social, como o foi na Antiguidade e na Idade Média, conforme se verifica nas canções de gesta. O tio materno e o sobrinho prestavam assistência mútua na literatura dos séculos 11-12, a tal ponto que, em A Canção de Rolando, o pai do herói sequer é mencionado. Estruturas arcaicas atestam, em toda parte, o papel do tio materno como autoridade familiar, a ponto de exercer, por isso, o papel de pai. O famoso conto de Guimarães Rosa, que fala de um caçador que trocou de lado, unindo-se (em vários sentidos) à onça, se intitula Meu Tio o Iauaretê e alude a essa estrutura estudada por Lévi-Strauss: é como se ele anunciasse, desde o título escolhido pelo escritor, que agora é filho da onça, seu tio. O breve estudo de Lévi- Strauss oferece, aliás, outros elementos que podem esclarecer a ação do protagonista dessa obra-prima da nossa literatura.

O antropólogo belga Claude Lévi-Strauss Foto: Edições Sesc

Os ensaios de Somos Todos Canibais são precedidos de um texto antigo do autor, O Suplício do Papai Noel, publicado na revista Les Temps Modernes, em 1952, no qual o cristianismo se sobrepõe ao paganismo, que o estimula e conforma. “O desenvolvimento moderno”, explica o autor, “não cria a partir do nada: limita-se a recompor com peças e pedaços uma velha celebração cuja importância nunca foi completamente esquecida.” Não haveria rito de Natal, tal como o conhecemos e praticamos, sem antigas celebrações romanas. “Resta saber se o homem moderno não pode também defender seu direito a ser pagão”, escreve Lévi-Strauss na conclusão.

SOMOS TODOS CANIBAIS 

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CLAUDE LÉVI-STRAUSS

EDITORA: 34

TRADUÇÃO: MARÍLIA SCALZO 

178 PÁGINAS 

R$ 62

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