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Liberas que terás também

Três mil pessoas ligadas à internet põem o dobro de informação na rede do que tiram dela

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Marcelo Branco está com raiva. "Vocês não deixem que a imprensa os chame de piratas!" À sua volta, sentados em cadeiras, grandes almofadas, ou no chão mesmo, gente que veio de todo o Brasil para a Campus Party ouve atenta. "Pirata vende o que não é seu, vocês não estão fazendo isso!" Marcelo mexe as mãos enquanto fala. Gesticula. O cabelo parcialmente grisalho na altura dos ombros, ele o usa desgrenhado. Tem 46 anos e um forte sotaque gaúcho. É um homem magro que veste calça larga e camiseta em cuja estampa se lê Creative Commons. "Vocês são livres!" Talvez pela figura, ou então pelo jeito que fala, ele tem um quê de profeta. Um profeta que prega a cultura da liberdade. A Campus Party é sua festa. Como ocupa o cargo de diretor do evento, Branco está sempre em toda parte. Circula o dia inteiro. Há 3 mil inscritos ocupando o prédio da Bienal de São Paulo, no Parque do Ibirapuera. Cada um pagou R$ 200 de inscrição. São na maioria jovens e homens. Acampam em barracas que ficam no terceiro andar, mas dormem pouco. Aproveitam o tempo no segundo piso, em grandes bancadas, cada uma com 50 cabos de rede. É só pegar e ligar no computador. Pelo cabo vem a internet mais rápida que qualquer um dos presentes já experimentou. A liberdade que Marcelo prega começa no mundo digital. "Você vê alguém com cara de nerd aqui?", ele pergunta enquanto anda e apresenta o espaço. Há jornalistas por toda parte com câmeras de fotografia e vídeo, gravadores. Procuram nerds sobre quem escrever. Vez por outra encontram um garoto qualquer que talvez tenha espinhas, que talvez seja pálido. Mas aí o garoto tem namorada. Engatam de volta na busca pelo nerd perfeito, sem jamais encontrá-lo. O estereótipo não se aplica. Marcelo sorri. Ele gosta de frustrar os jornalistas. Os freqüentadores se dividem em vários grupos. O maior é o dos desenvolvedores de software livre. Os programas que fazem regulam o tráfego aéreo em aeroportos, servem para editar filmes de longa metragem, editam textos. Há programas de todo tipo e são livres. Quem quiser pode fazer uma cópia sem pagar. Pode também mexer no código do programa para que ele funcione diferente. O segundo grupo é o dos gamers e, para eles, o principal da festa é jogar em grupo. Cada um está com seu computador pessoal, mas, ligados em rede, vêem-se uns aos outros na mesma partida de futebol, servem de soldados numa mesma batalha contra alienígenas ou pilotos em carros distintos da mesma corrida. Ainda há blogueiros, astrônomos amadores, gente que constrói gabinetes diferentes para seus computadores e engenheiros de robótica. Plantado numa das extremidades do salão, está um grande aquário, com paredes de vidro, através da qual se vêem as estantes de equipamentos, telas brilhosas, luzes piscantes e muitos cabos. É onde chega a fibra ótica com internet. Polkan García, um colombiano de 27 anos, fica lá. Seu título oficial é diretor de tecnologia. Ele monitora o tráfego da rede. Se quisesse, poderia dizer o que cada um que ligou seu computador por ali anda fazendo. Houve o garoto, por exemplo, que tentou burlar os sistemas de segurança e derrubar a conexão da rapaziada. Um hacker amador. Polkan achou graça. Viu de qual cabo vinha a tentativa de invasão, caminhou lento e discreto, se abaixou despercebido e falou baixo ao pé do ouvido: "Pára de mexer com a rede". O rapaz tomou um susto. Lívido, coitado. Fechou seu notebook, pegou a escada para baixo, largou o prédio da Bienal, jamais voltou. Não era para tanto. Polkan é ele próprio um hacker - um hacker de chapéu branco, como dizem. Do bem. Conhece as máquinas por dentro, os programas que rodam nelas com intimidade. Aponta para a tela de computador onde está um gráfico com números: download de 452.8 Mbps e upload de 840 Mbps. Quer dizer que naquele momento a turma está baixando da internet 452.8 megabits a cada segundo. E que está enviando para a rede 840 megabits no mesmo período. Quer dizer uma coisa muito mais simples. Quem está na Campus Party põe na internet o dobro do que tira dela. Põe na rede? A trupe que foi à Campus Party transmitiu ao vivo palestras em vídeo, levou ao YouTube coisa de 150 filmetes por dia, depositou em sites de troca de músicas livres gigabytes de arquivos de áudio digital e é impossível contar quantas fotografias tiradas na festa foram publicadas em sites de fotos, em blogs. Não são apenas os muitos jornalistas que fotografam, gravam, filmam - todos são um pouco jornalistas na era digital e, daquilo que vêem, quase tudo é publicado na internet. Colaboram, afinal, participam, contribuem - seguindo o mantra de Marcelo Branco. De vez em quando, no meio do salão, alguém desgruda a cara do monitor, se levanta e grita alto para que todos ouçam: "Patxi!" Do outro lado, de bem longe, uma penca responde: "Patxi!" A palavra é um nome. Em basco, quer dizer Chico. Vem do comercial de uma companhia telefônica espanhola no qual um consumidor que não foi informado das tarifas com desconto tenta conversar com seu amigo Patxi, no outro lado da cidade, gritando seu nome pela janela. (O filme está no YouTube - é só digitar Patxi na busca.) O anúncio ficou popular na Espanha e, daí, citá-lo assim do nada virou tradição das Campus Party. Afinal, a de São Paulo não é a primeira Campus Party. Ela acontece todos os anos desde 1997 em Valência. Em 2007, reuniu 8 mil pessoas. Já houve edições em Portugal. Fora da Europa, esta brasileira é a primeira festa dos acampados com uma conexão assim fantástica para a internet. "Aqui no Brasil é muito diferente" diz Jonan Basterra. Ele é basco - o único por ali que conhecia a origem da história de Patxi. Tem 37 anos e é o blogueiro oficial do site em espanhol da festa. "Lá na Espanha não tem tanto programador e a maioria das pessoas que vêm é de gamers. Eles querem jogar. Lá, fica todo mundo com a cara grudada no computador. Aqui, não. Vocês largam o computador na mesa toda hora e ficam circulando. Vocês trocam muito. Compartilham." E assim vai o mantra - compartilha, troca. Aquilo produzido com câmeras ou computadores na Campus Party é licenciado para o uso mediante um contrato especial que em todo mundo atende pelo nome Creative Commons. É por isso que a frase vai estampada na camiseta de Marcelo Branco. Quando o autor escolhe licenciar sua obra seguindo um contrato Creative Commons, ela está disponível para cópia. Basta ir lá e pegar. O que não pode é ganhar dinheiro em cima. Mas acontece que, às vezes, o que se troca e compartilha com a banda ultra-rápida não é software livre, música livre, fotografia livre ou filme livre. É software proprietário, filme de Hollywood, música dos grandes estúdios - e nada foi pago. Não há censura na Campus Party, tampouco violência. Em seu monitor, Polkan García aponta numa lista o programa que mais consome a conexão de internet: é o BitTorrent. Não navega pela web, tampouco baixa e-mail. Serve para que usuários da rede possam trocar arquivos de todo tipo. Ninguém é capaz de dizer o que cada computador está tirando da internet. Pode ser um filme livre. Ou a temporada completa de uma série televisiva favorita. Gigabytes e gigabytes de Lost foram baixados pela trupe ali. "Não vigiamos o que as pessoas fazem na internet", diz Marcelo Branco. "Na Europa, a empresa de telecomunicações oferece a conexão à internet mas é ilegal revelar o que cada cliente faz na rede." Seu discurso é mais sofisticado que isso. No mundo ideal de Marcelo, aquele que a Campus Party celebra, cada cidadão só é realmente livre quando tem conhecimento. Seu mote é um velho ditado da rede: a informação quer ser livre. Toda informação. Só com software livre, por exemplo, ele pode ter certeza de que não está sendo espionado. Como conhece cada linha do código daquele programa, sabe que não há uma grande empresa com algum acesso secreto a informações pessoais depositadas no computador. É um tipo de liberdade que exige um mundo de hackers capazes de compreender linhas de código. "Ninguém que queira produzir qualquer coisa de valor com sua vida, hoje, conseguirá fazer isso sem passar por um computador." Marcelo acredita profundamente em cada palavra que diz - e todas são ditas com paixão. "A internet faz parte da vida de todos nós. Não podemos deixar que empresas controlem os programas e os formatos da rede." Circulando pela festa, Gilson Schwartz, professor da Cidade do Conhecimento da USP, abre um sorriso: "O homem comum nunca vai ser um técnico nesse nível". Aí, pára, pensa. "Sabe, isso é filosofia. O Jean-Paul Sartre escreveu sobre isso. Liberdade absoluta não existe." Talvez. As fotografias desta reportagem foram tiradas por gente da Campus Party, que termina hoje. Foram levadas à rede pela conexão mais rápida já vista no País. São, todas, livres.

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