Liberdades Uspianas

Colocar a polícia no campus da universidade pode ser uma oportunidade de educá-la para padrões de civilidade

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colunista convidado
Por José de Souza Martins
Atualização:

O tiro pelas costas num estudante do curso noturno de Letras, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, nessa semana, numa tentativa de assalto, revela muito mais do que a notícia sumária de sua ocorrência pode sugerir. Por trás dessa violência descabida há uma trama de mistérios, o dos nossos medos, o de nossa relutância entre o anseio de liberdade e o medo da liberdade. 

A insegurança tomou conta dos campus de várias outras universidades brasileiras. No campus do Butantã da USP, outras mortes tem ocorrido, estupros tem acontecido, roubos e assaltos são frequentes, traficantes vendem drogas como se estivessem na feira livre, vendendo tomates e alfaces. É um equívoco reduzir essas ocorrências a mera questão policial, como se as cidades universitárias fossem um bairro a mais do município. 

Visão geral.Não haverá segurança na Cidade Universitária se ela for uma ilha da fantasia Foto: JF DIORIO/ ESTADÃO

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A criminalidade, nas cidades universitárias, decorre da violação daquilo que é próprio dos recintos e territórios acadêmicos. As universidades originaram-se em territórios sagrados, de algum modo, ligadas ao culto, junto a conventos, mosteiros e mesquitas. Por isso, territórios invioláveis. Com a secularização, o fundamento dessa peculiaridade passou a ser o do resguardo da produção e difusão do saber, um meio termo entre a laicidade absoluta e a sacralidade absoluta. 

A produção e a difusão do conhecimento tem que ser resguardadas, protegidas, apoiadas e defendidas. O que é próprio desse mundo peculiaríssimo se estende aos seus agentes, professores, alunos e funcionários e aos visitantes desses recintos únicos. É inútil defender a qualquer preço tudo que se quer fazer, próprio do que é externo a esse âmbito, se esse exercício amplo da liberdade transforma o território sagrado da universidade em território profanado do crime e da violência, que se torna propício ao perigo, ameaça o trabalho intelectual e, sobretudo, ameaça a vida das pessoas que a ele se dedicam. 

O que aconteceu no campus do Butantã da USP nos remete para esse cenário desalentador. A brutalidade de ocorrências como a desse crime induz ao inevitável: a contrapartida da polícia no campus. A resistência que estudantes e professores tem oferecido a essa presença, ainda que compreensível, tornou-se descabida e perigosa. No entanto, convém ter presente alguns fatores desse temor, com os quais a universidade e a polícia terão que lidar. 

Agora mesmo, o País se defronta com os indícios cada vez mais evidentes de envolvimento policial na chacina ocorrida há poucos dias em Osasco, muito perto da Cidade Universitária. Mesmo que 99% dos policiais sejam cumpridores das leis e respeitadores dos direitos humanos, se 1% deles se achar no direito de sobrepor-se à lei e aos valores da civilização, todo o conjunto da instituição policial será objeto de desconfiança e de medo. E se anulará.

É compreensível, portanto, o alarme de estudantes e professores quanto à presença da polícia no território da universidade. Mas, as leis do País não preveem territórios isentos de enquadramento legal e institucional. A segurança das pessoas e das instalações públicas é responsabilidade das instituições para isso criadas. As cidades universitárias tornaram-se fictícios territórios livres, não para a liberdade de pensamento, aí frequentemente ameaçada pelos que deveriam defendê-la, mas para a ação dos criminosos que dela se aproveitam. Essa liberdade mutilada e deformada apenas incrementa a insegurança e mais expõe os que deveriam ser protegidos e defendidos. Sabedor disso e da inocência cúmplice dos ingênuos, o crime tem se instalado nos recintos universitários, ameaçando a todos. Criminosos entendem que podem ali agir impunemente. 

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Não há alternativa a não ser a alternativa da lei. É claro, que essa pode ser a oportunidade para educar a polícia para padrões de civilidade que nessas questões não temos. Alunos, professores e funcionários poderão ter um papel privilegiado nessa educação e na formação de quadros especializados em segurança universitária. O fundamental não é o “quem” nem o “como”, mas a segurança e a paz de espírito dos que estudam e trabalham nos recintos universitários, a certeza de que estão protegidos. Nem a polícia deve ser tratada como inimiga da comunidade acadêmica nem a comunidade acadêmica deve ser tratada como inimiga da polícia, uma distorção ideológica remanescente da já distante ditadura. A polícia não é nem pode ser inimiga da sociedade. A reciprocidade do compromisso com o bem comum é que precisa prevalecer nesse encontro e nessa convivência.

Não é educativa a liberdade de ficção que se advoga para os campus. A liberdade, no seu verdadeiro sentido político, não é a objeção às instituições, mas a construção compartilhada da liberdade para todos e não só para alguns. É inútil o campo de concentração da liberdade fictícia, se o País inteiro vive no medo e na insegurança, exportando para dentro dos campus a violência já disseminada. Não haverá segurança no campus se o campus de tornar uma ilha da fantasia.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO. MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS. AUTOR DE LINCHAMENTOS - A JUSTIÇA POPULAR NO BRASIL (CONTEXTO)

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