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Lições da execração

Ted Kennedy venceu o estigma da fuga covarde para se tornar um bravo lutador dos direitos civis

Por Joyce Carol Oates
Atualização:

."Não há segunda chance na vida dos americanos." A triste afirmação de Scott Fitzgerald foi refutada diversas vezes, nunca de forma mais apropriada do que em referência ao senador Teddy Kennedy, falecido quarta-feira. Na verdade, pode-se dizer que a carreira do senador como um dos mais influentes políticos democratas do século 20, um ícone tão poderoso e moralmente enigmático quanto o presidente Bill Clinton, com quem Kennedy se parecia em vários sentidos, foi uma consequência de seu notório comportamento no episódio de Chappaquiddick, em julho de 1969.

 

 

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Ironicamente, depois de chegar ao ponto mais baixo da vida e carreira, Ted Kennedy parece ter se remoldado como um democrata liberal sério, idealista, incansável e energético, nos padrões do liberalismo americano dos anos 60 e 70, tornando-se talvez o maior senador democrata americano do século 20. Sua incansável defesa dos direitos civis, dos direitos dos portadores de alguma deficiência, da reforma da saúde, da reforma eleitoral, seu voto corajoso contra a guerra no Iraque (quando muitos democratas, entre eles Hillary Clinton, votaram a favor), sugerem que não apenas há "segunda chance" para os americanos, mas também que o conceito renascentista de "queda feliz" (como é chamado o pecado original) pode ser relevante aqui: as pessoas caem como Adão e Eva caíram, pecam, arrependem-se e são perdoadas, desde que refaçam a vida.

 

Kennedy tinha 36 anos. Era um senador por Massachusetts cuja carreira política havia sido administrada pelo pai, Joseph Kennedy, e facilitada pelo dinheiro da família. Sua expulsão de Harvard, por colar num exame final, fora anulada por pressão da família. Como George W. Bush, outro mimado irmão mais jovem em uma família influente e abastada, cujo sucesso posterior na política teve pouco a ver com seu evidente talento, inteligência ou ambição, Ted Kennedy foi preparado para a vida pública a despeito de suas duvidosas qualificações.

 

Na ilha de Chappaquiddick, depois de beber e divertir-se com jovens assessoras de seu irmão Robert Kennedy, o senador , na época casado, pai de família, saiu da festa com Mary Jo Kopechne, uma jovem de 28 anos. Ele perdeu o controle do volante ao sair de uma ponte e o carro afundou parcialmente em apenas 2,40 m de água. Mary Jo ficou presa no veículo.

 

Kennedy preferiu se evadir da cena do acidente, deixando a jovem morrer em agonia, não por afogamento, mas por sufocação, durante horas. O mais inacreditável é que ele só comunicou o acidente dez horas mais tarde, depois de consultar um advogado da família. A explicação do senador para seu comportamento irresponsável, desprezível e covarde nunca convenceu: ele alegou ter levado uma pancada na cabeça e ficado "confuso" e "exausto" por mergulhar tentando salvar a jovem, indo então para casa deitar-se.

 

O que se seguiu foi um circo, com toda a imprensa correndo para Chappaquiddick para expor o comportamento de Kennedy e especular sobre o seu futuro. Entretanto, visto em retrospectiva, o fato de o senador ter procurado seu advogado em lugar de procurar ajuda para Mary Jo Kopechne, presa no carro, parece ter sido a decisão que deu resultado.

 

Se Kennedy tivesse pedido ajuda, muito provavelmente teria que fornecer à polícia provas que o incriminariam, o que implicaria acusação de direção irresponsável ou homicídio. O promotor local não ficou tão indignado com o comportamento de Kennedy quanto outros promotores teriam ficado: as acusações reduziram-se a "deixar de informar um acidente" e "abandonar a cena". A pena: 2 meses de prisão, com sursis.

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É público e notório que os Kennedys sempre foram uma família que agia fora das restrições legais que obrigam outros cidadãos a ter um comportamento público "moral"; nada exemplifica isso tão bem quanto Chappaquiddick e o subsequente silêncio cooperativo da família Kopechne, que concordou em nunca falar da tragédia.

 

Alguém pode ser levado a pensar em Tom e Daisy Buchanan de O Grande Gatsby, de Fitzgerald, um casal rico acostumado a se comportar com negligência e deixar para outros consertarem seus erros. Há exemplos frequentes de "quedas felizes". O caso do herói/anti-herói Lord Jim, de Joseph Conrad, como uma clássica analogia literária, de que indivíduos inocentes aparecem quase como vítimas rituais, é outro aspecto do fenômeno.Entretanto, se pesarmos a vida de uma jovem em relação às realizações do homem que o presidente Obama chamou de o maior senador democrata da história, o que pensar?

 

O poeta John Berryman perguntou uma vez: "A maldade é solúvel em arte?" Parafraseando a pergunta em um vocabulário mais adequado à nossa era politizada: "A maldade pode ser resolvida com boas ações?"

 

O paradoxo encontra-se no próprio cerne da vida pública: indivíduos de caráter duvidoso e autores de atos cruéis redimem-se com ações desinteressadas. A fidelidade a um código pessoal de moralidade pode ficar esmaecida quando a esfera pública, como um enorme sol, nos cega para todo o resto.

 

*Autora de Black Water, inspirado no incidente de Chappaquiddick. Escreveu este artigo para The Guardian

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