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Livre-comércio com face humana

Os acordos de abertura dos Estados Unidos com outras nações falharam por serem apenas comerciais

Por Jorge G. Castañeda
Atualização:

Apesar de muitos americanos considerarem a imigração um assunto doméstico que deveria ser excluído das negociações com outros países, essa visão não é compartilhada por outras nações - nem pelos Estados Unidos. De fato, os EUA firmaram seu primeiro acordo de imigração em 1907, mantiveram durante mais de duas décadas um controvertido tratado de imigração com o México e seguiram negociando tratados de imigração até mesmo com Fidel Castro desde o início dos anos 1960. Para muitos países latino-americanos, e não apenas o México, a imigração é simplesmente o assunto mais importante em se tratando das suas relações com os EUA. As ilhas do Caribe têm todas uma proporção semelhante dos seus cidadãos vivendo nos EUA e são tão dependentes de remessas de dólares quanto o México. O mesmo vale para a América Central. E não há parte da América do Sul que esteja fora desse padrão. Assim, quase toda a América Latina é profundamente afetada pela atual atmosfera de imigração nos EUA, e se beneficiaria muito com o tipo de reforma imigratória proposta por John McCain e Barack Obama. A deplorável decisão da administração Bush de construir cercas ao longo da fronteira entre EUA e México, dar batidas policiais em locais de trabalho e moradia de imigrantes e deter e deportar estrangeiros sem documentação é vista na América Latina como hipócrita e desrespeitosa. O tema se torna ainda mais doloroso e decepcionante porque a maioria dos ministros latino-americanos do Exterior sabe que essas atitudes são gestos puramente políticos, e nada mais. Todos sabem o que uma reforma imigratória consciente envolveria: um maior aparato de segurança na fronteira, mas também a inclusão de portões nos muros atualmente em construção; a legalização, mediante multas razoáveis e um processo eficiente, dos cerca de 15 milhões de estrangeiros presentes ilegalmente nos EUA; e o estabelecimento de um programa para trabalhadores temporários ou imigrantes capaz de permitir que um número suficiente desses venha satisfazer as necessidades crescentes da economia americana, oferecendo ao mesmo tempo a possibilidade de visitas regulares ao país de origem e residência permanente nos EUA. Um segundo componente é a vontade política e o senso de oportunidade. Bush acertou no começo: sua disposição em negociar um acordo de imigração junto ao México no início de seu mandato era provavelmente a única maneira de avançar nesse tema. É possível que a rapidez de iniciativa seja também a única maneira de o próximo presidente progredir nessa frente. Se esperamos que a imigração se torne um assunto menos polêmico, os EUA precisam se dar conta das necessidades econômicas da América Latina. Nesse ponto, um dos principais desafios que a próxima administração dos EUA terá de enfrentar será o conjunto de acordos de livre-comércio, tanto em vigor quanto pendentes, entre os EUA e a América Latina. Se John McCain for eleito, é improvável que ele altere os acordos Nafta, Cafta e os acordos de livre-comércio com o Chile e o Peru, conforme propôs Barack Obama. Mas, levando-se em consideração a probabilidade de os democratas conservarem sua maioria no Congresso, mesmo McCain seria obrigado a modificar o acordo com a Colômbia para obter sua aprovação. A partir de então, a pressão pela inclusão de dispositivos semelhantes em outros acordos só aumentaria. Se a recessão se prolongar e os americanos continuarem culpando - equivocadamente - os acordos de livre-comércio pelo aumento no desemprego, pela redução nos salários e pela desigualdade crescente, a oposição a esses tratados aumentará. Em vez de esperar até que a pressão se acumule, o próximo presidente agiria bem se a desarmasse por meio de um programa ambicioso de reforma imigratória capaz de beneficiar a todos. Nesse sentido, os EUA poderiam aprender com a União Européia. Os acordos de livre-comércio americanos falharam por se limitar apenas ao comércio. A resposta sempre foi a mesma: os EUA não são a Europa nem estão no ramo da edificação de nações, ou mesmo da sua reconstrução. No entanto foi exatamente o que os EUA fizeram, primeiro com o Plano Marshall pós-1945 e agora, sem sucesso, com o Iraque e o Afeganistão. Em primeiro lugar, devem ser incluídas cláusulas explícitas e claras com referência ao respeito aos direitos humanos e à democracia, algo nos moldes de cláusulas semelhantes presentes nos tratados firmados entre a UE e a Associação Econômica do México e do Chile. Em segundo lugar, é necessária a inclusão de dispositivos mais específicos relativos aos temas do trabalho, meio ambiente, igualdade de gênero e direitos dos indígenas, além de dispositivos antitruste, mecanismos reguladores e de reforma judicial, por motivos tanto de princípio quanto de praticidade política. Apesar de ter havido imenso progresso na maioria dessas áreas, ainda há muito a se avançar, especialmente em relação à quebra e regulamentação de monopólios - públicos, privados, comerciais e sindicais - que afligem praticamente todos os países da região. Esses acordos revisados devem incluir dispositivos audaciosos e inspirados para a criação de fundos de "coesão social" e infra-estrutura, já que isso pode fazer a diferença entre a mera sobrevivência e o sucesso. Os defensores do livre-comércio não devem encarar a exigência de Obama pela revisão desses tratados como um equívoco, mas como uma oportunidade de aprimorá-los e aprofundá-los; os partidários de McCain não devem encarar a incorporação de todas as inclusões citadas acima como "baboseira européia", mas como uma forma de diminuir o abismo existente entre a promessa dos acordos e seus resultados práticos. A melhoria da infra-estrutura, do sistema de educação e do respeito à lei no México e na América Central, ou a melhoria do respeito à lei e aos direitos humanos na Colômbia e no Peru, além do combate ao tráfico de drogas, tudo isso se inclui nos interesses dos Estados Unidos, e os acordos de livre-comércio ajudariam nesses esforços, em vez de atrapalhá-los. Se os EUA e a América Latina forem capazes de responder conjuntamente aos desafios do comércio e da imigração, o próximo presidente dos EUA pode deixar uma marca mais significativa nas relações entre os hemisférios do que qualquer outro líder americano nas últimas três gerações. *Jorge G. Castañeda, ex-ministro das Relações Exteriores do México (2000-2003), é professor de política e estudos latino-americanos na Universidade de Nova York

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