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Livro analisa a obra do pioneiro da videoarte Bill Viola

Viola estabelece uma conexão com tradições como a mística cristã, o sufismo islâmico e o xamanismo arcaico

Por Rodrigo Petronio
Atualização:

Poucos artistas contemporâneos conseguiram criar uma gramática visual tão complexa, inovadora e coerente quanto o estadunidense Bill Viola. Um dos pioneiros da exploração de novas mídias nas artes visuais, como o vídeo, a televisão, a fotografia e os processadores eletrônicos, Viola emerge nos anos 1970 aliado a nomes como o pioneiro da videoarte Wolf Vostell, Bruce Nauman, Joseph Beuys e o movimento Fluxus. 

Cena do documentário que mostra a instalação de obras de Bill Viola na Catedral de St. Paul, em Londres Foto: FOXY FILMS

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A vastidão dos horizontes abertos pelas novas mídias foi inspirada por três artistas que Viola reconhece como mestres: David Tudor, Nam June Paik e Peter Campus. Entretanto, aos poucos Viola se desliga do imperativo da revolução digital. Afasta-se da tecnofilia. As novas tecnologias começam a ser concebidas como meios de reconstrução das tradições visuais da arte humana. E, aos poucos, transforma-se em no suporte por excelência da expansão dos limites da mente. 

A recente exposição do artista no Sesc Paulista, intitulada Visões do Tempo, foi uma excelente introdução ao universo visual desse xamã das novas tecnologias. Por seu turno, o livro Bill Viola, escrito por John G. Hanhardt e organizado por Kira Perov, esposa e companheira de criação do artista há décadas, publicado pelas Edições Sesc em cuidadosa tradução de Leonardo Abramowicz, consegue materializar essas hierofanias de Viola para quem por algum motivo não as tenha visto.

A obra de Viola aborda o mundo e a totalidade da percepção a partir do signo flutuante das imagens em movimento. O universo e a mente seriam nada mais do que imagens-movimento. Para além da concepção bergsoniana e deleuzeana dessa tese, o método de composição e pesquisa do artista oscila entre a fenomenologia (a suspensão do juízo sobre os dados da experiência) e a ontologia (exploração da pluralidade de mundos emergentes dos estratos ocultos da percepção). Por isso, Viola se apoia em imagens sutis, procurando assim reconstruir as camadas representacionais da percepção a partir da exploração de perspectivas não humanas e meta-humanas. 

Boa parte desse processo é descrito em seus maravilhosos cadernos de trabalho: Cadernos de Anotações, Livros de Projetos e Livros de Obras. Um dos imperativos da arte de Viola é captação de experiências metaempíricas (para além dos sentidos). As imagens decorrentes dessa captação não se restringem a imagens visuais. Por isso, Viola estabelece uma conexão produtiva com tradições visionárias arcaicas, como a mística cristã, o sufismo islâmico e o xamanismo arcaico. O conjunto de sua obra é uma espécie de teologia natural das formas, de inspiração humanista e secular. 

Viola atualiza tradições antigas, tais como a noção de exercícios espirituais estudada por Pierre Hadot. Suas obras são determinadas por anamorfose (desproporções provocadas pela perspectiva). E, desde o começo, Viola revela-se um artista em busca da recuperação de uma grande ambição de narratividade visual. No caso de Inner Passage (2013), as consciências humana e animal são confrontadas a partir de mergulho na interioridade da natureza, à maneira das teses de Bataille.  As novas mídias passam aos poucos a serem concebidas como máquinas de visão. São meios de criação de uma arte global radicada na temporalidade. Essa busca, cujas matrizes são espiritualidades seculares modernas, pretende revelar uma verdade ao espectador: a multidimensionalidade do tempo e do espaço. Essa revelação se apoia em uma metaestratégia cognitiva e performativa: a recorrência de imagens de construção e de destruição. O presente assim se torna tangível ao espectador. Ao passo que os espaços distantes se sincronizam, mediante uma visão de simultaneidade.  Estamos aqui diante de uma ontoteologia da arte. Uma dimensão por meio da qual a esfera do sagrado se reconstrói e se descola de todas as religiões e confissões específicas. Adquire um estatuto universal, desvinculado de qualquer dogma. A noite escura da alma, tematizada pelo poeta e místico São João da Cruz, conecta-se à teoria dos véus do místico sufi Rumi. Ambas surpreendentemente se materializam em uma instalação em vídeo. A tela seria a membrana da alma que sonha e que se ensombrece pelo eclipse de Deus. Estamos mergulhados em uma concepção humanista da vida e da morte como processos inerentes ao ser. Nesse sentido, Viola consegue transcender também o enquadramento a grupos, técnicas e a movimentos específicos da arte, tais como fluxus, conceitual, processo ou performance. Paradoxalmente, embora enraizada em novas tecnologias, sua obra está muito longe de ser uma arte comercial. Segundo Hanhardt, uma das premissas dessa arte é a transformação do físico em psicológico. Poder-se-ia complementar: do físico em transfísico. Naquilo que, sem deixar de pertencer ao reino da natureza, extrapola a dimensão contingente dos sentidos. A arena onde esse embate entre corpo e tempo ocorre é a mente. Por isso, Viola concebe as imagens como uma “consciência desencarnada da câmera”. Esse transe levaria o espectador a se sentir fisicamente no sonho de outra pessoa. Para acessar essas camadas do ser, Viola teve necessariamente que quebrar o plano pictórico da representação, que domina a arte desde o Renascimento. É o que se presencia em The Theater of Memory (1985). O diálogo com as ciências naturais aprofunda ainda mais a vastidão narrativa e especulativa de seu projeto. Em I Do Not Know (1986), o artista se apoia em teorias sobre as estruturas cognitivas profundas inerentes à esfera reptiliana de nosso cérebro. A partir dessa matriz, propõe a existência de estados internos e redes de conexões de consciência que todos os seres vivos carregam consigo. Cunhou a bela definição de sua obra como a “grande enciclopédia da vida”. Essas associações emotivas profundas, ligadas às camadas geológicas e darwinianas da vida e da Terra, encontram-se também no âmago de Passage (1987). A obra e o pensamento de Viola são fundados em uma hierofania natural: uma emergência de fascinações sagradas do interior dos processos imanentes da natureza. Essas hierofanias seriam baseadas no conceito de energia, tomado em seus dois vetores principais: energia transmitida do movimento (tempo) e energia ligada à direção do movimento (espaço). Entretanto, tempo e espaço não são homogêneos. Constituem mundos e cruzamentos de mundos distintos e em constante heterogênese. Possuem a forma dos fractais: “cada parte de um espaço contém conhecimento de todas as outras partes”. O objetivo precípuo da arte de Viola é figurar as múltiplas vidas da mente em membranas digitais: “As múltiplas vidas da mente (memória, realidade e visão) se fundem”.  Esse objetivo pode ser notado nas esculturas de tempo de Turning Narrative (1992), que pretendem figurar um self capaz de incorporar situações de ser potencialmente infinitas. Outro aspecto extraordinário da arte de Viola diz respeito ao tratamento das atmosferas. Aparições atmosféricas, respiração, permeabilidade e o trabalho com os elementais moldam obras como Pneuma (1994/2009), The Veiling (1995) e The Crossing (1996). Claro. São releituras formais e conceituais da teologia pneumática dos padres fundadores da teologia bizantina, da doutrina emanatista dos neoplatônicos e da angelologia islâmica. Entretanto, o deslocamento de signos empreendido por Viola é brilhante. Em nenhum momento a arte cede espaço à teologia. Em nenhum momento a forma se vincula ao dogma ou à confissão.  A fase mais recente do trabalho de Viola enfatiza questões de composição e reativa o conceito antigo de imitação-emulação de obras e artistas da tradição, sobretudo os renascentistas Jacopo de Pontormo, Hieronymus Bosch, Andrea di Bartolo Cini. O enorme projeto metanarrativo Going Forth by Day (2002) consiste basicamente em um filme que pode ser adentrado pelo espectador. A visão em grande escala reposiciona o humano na natureza e no cosmos. Esvazia o humano de protagonismo e da centralidade.  Quem sou? Onde estou? Para onde vou? Não por acaso esas questões metafísicas nortearam a grande exposição de Viola no Grande Palácio de Paris, com curadoria de Perov e de Jérôme Neutres, em 2014. Um dos ápices desta exposição é a série Os Mártires: Terra, Ar, Fogo, Água (2014), também exposta em São Paulo. Nela Viola atinge um dos ápices de sua consciência das formas e das formas da consciência. Seremos todos “banhados por um oceano invisível acima e ao redor de nós”, como queria Emerson, citado por Hanhardt? Provavelmente. E Bill Viola é hoje um dos maiores desbravadores desse grande oceano da consciência. Uma humana e transumana, que nos rodeia e que nos atravessa, em todos os planos e direções.  ] É ESCRITOR, FILÓSOFO, PROFESSOR TITULAR DA FAAP E PÓS-DOUTORANDO NO CENTRO DE TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL (TIDD/PUC)

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