Livro analisa os principais textos escritos por tiranos, de Hitler a Castro

A ideia do jornalista escocês Daniel Kalder surgiu de uma viagem ao Turcomenistão, onde leu o livro cheio fantasias míticas de seu ditador

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Por Elias Thomé Saliba
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Apesar das palavras por eles escritas provocarem a morte de milhares de pessoas, seus livros desfrutaram de tiragens enormes e de amplo sucesso porque tiveram um público (literalmente) cativo. Lenin era hábil na escrita, produzindo teorias menos empolgantes do que suas táticas revolucionárias. Stalin era melhor em compilar escritos alheios, mas em História do Partido Comunista na URSS, revelou-se como único especialista em acreditar nos próprios absurdos. Mussolini foi jornalista e seu Diário de Guerra antecipou, até com bons recursos literários, a rasa brutalidade do fascismo. Já Hitler, bom em discursos e péssimo na escrita, escreveu um projeto de terror sanguinário com tamanha franqueza que ninguém teve coragem de acreditar. Mao escrevia pouco e chegou a terceirizar a escrita dos seus textos e poemas, reunindo em livro famoso uma pilha de citações desarticuladas, repetitivas, banais e deploráveis. 

Estátua de cera de Hitler destruída em exposição do Madame Tussauds de Berlim em 2008 Foto: Tobias Schwarz/Reuters

Estas são algumas das revelações que constituem o ponto de partida para Daniel Kalder em A Biblioteca dos Ditadores, um estudo detalhado e paciente dos livros publicados pelos mais notáveis tiranos do século 20. Jornalista nascido na Escócia, Kalder morou vários anos na Rússia de Putin e a inspiração para sua pesquisa surgiu de uma visita ao Turcomenistão, então governado pelo ditador Niyazov, que usou as imensas reservas de gás do país para construir fantasmagorias urbanas – a maior das quais, uma estátua em ouro dele próprio, com um mecanismo que girava para ficar sempre na direção do sol. Campeão no culto à personalidade, Niyazov publicou o Ruhnama (Livro da Alma), um volume cheio de fantasias míticas e invencionices paranoicas – a maior delas a de que a civilização turcomena teria surgido há mais de cinco mil anos. O livro, no entanto, virou leitura obrigatória nas escolas e templos e foi exigida até mesmo para o cidadão turcomeno tirar carteira de motorista. Óbvio que o ditador proibia a entrada de jornalistas, mas Kalder, que era pouco conhecido e, naquela época, ainda não aparecia nas buscas na Internet, aproveitou-se de um descuido passageiro e conseguiu entrar no país. Daí nasceu a inquietação do investigador: por que os livros desta “biblioteca infernal” (título da publicação original), recobertos com o manto do recalque da memória coletiva, eram quase desconhecidos? Descobriu aí a perigosa síndrome dos livros dos ditadores: eles se escondem à vista de todos e são tão ruins que tornam impossível acreditar em seu poder de impactar tantos leitores.  A primeira parte do livro contempla as principais obras daqueles cinco “clássicos” da biblioteca dos ditadores, ensaiando, quando possível, alguma análise literária. Quando possível, porque o próprio Kalder confessa o quanto a pesquisa foi dolorosa ao esmiuçar a produção, a difusão e a trajetória dos piores livros do século 20. Livros que tiveram tiragens recordes, como é óbvio, pela ditadura editorial dos seus autores – e, em alguns casos, acabaram aclamados por intelectuais que deveriam ser mais sensatos com autores que, afinal, acabaram se revelando como genocidas de carteirinha.  Mas Kalder não se limita apenas aos “clássicos” da tirania – Lenin, Stalin, Mussolini, Hitler e Mao –, examinando ainda as aventuras bibliográficas de muitos outros “pequenos demônios” que não chegaram a obter repercussão internacional, tais como Mustafá Kemal, Franco, Salazar, Kadafi, Saddam Hussein, Fidel Castro, chegando até a coreana dinastia dos Kim. Claro que, com as exceções de praxe, como Salazar ou Castro – tais livros eram enfadonhos e abusavam do truque ditatorial – já padronizado – de compilar discursos, requentar longas entrevistas e, com a ajuda de terceiros, substituir as banalidades por factoides visando fomentar medos e ódios. Em resumo, a literatura dos ditadores parece ter gerado uma tradição própria, semelhante aquela que T. S. Eliot descreve no clássico Tradição e Talento Individual, só que infinitamente mais tediosa, mais temida e menos lida do que reverenciada. Uma tradição de escritos que garantiam às pessoas uma chance única de maltratar alguém, de odiar o outro com a consciência limpa – aquilo que Huxley definiu tão bem como “o cúmulo do luxo psicológico e o mais delicioso dos deleites morais” para os leitores.  A inominável coleção de falsidades, reunidas no Minha Luta, de Hitler, transformaram-no num best-seller compulsório no mundo nazista: citações obrigatórias nos livros escolares, publicação de uma “edição de casamento” (feita com papel de arroz e oferecida como presente a recém-casados), versão em braile em 1936 e até edições de bolso que acompanhavam uniformes dos soldados. Nos dias atuais, apesar da proibição do livro em alguns países, ele ainda prolifera em muitas línguas: a edição em árabe chegou a ser traduzida com o título de Meu Jihad. A grande ironia é que Minha Luta ainda é mais popular justamente em países habitados por povos que o próprio ditador considerava como Untermenschen (“criaturas sub-humanas”). Por meio de sua narrativa de ódio absoluto e implacável, alcançou uma imortalidade perversa – reafirmando a cortante definição de J.G. Ballard: “O psicopata nunca fica datado”.  Já o Livro Vermelho de Mao é o único do cânone dos ditadores que é endossado até hoje pelo Estado outrora governado por ele; claro, depois do governo chinês desinfetar, expurgar e suprimir todos os refrões mais radicais do livro. No expurgo, apagou-se a significativa frase de Aristóteles que Mao havia anotado à lápis num dos rascunhos: “A juventude é facilmente enganada porque é rápida em criar esperanças”. É um livro que, retirado do ambiente de mobilização e de ação revolucionária, torna-se vazio e medíocre – não é livro para ser lido, pois serviu apenas para sugerir gritos coletivos e palavras de ordem para as carnificinas da Guarda Vermelha. Espantoso é como ele correu o mundo, entusiasmando gente como Sartre, Foucault e Shirley MacLaine nos anos 1960. Mao acabou ganhando cerca de US$ 800 mil, em 1967, com edições em oito línguas e 22 países. Nos últimos anos, o opúsculo maoista acabou ganhando uma segunda vida, vendido como suvenir para os turistas ou, ainda, com suas frases sendo devidamente adaptadas em cursos de motivação empresarial: “o poder político brota do cano de uma arma”; “uma revolução não é um jantar”, “os bebês querem se rebelar, devemos apoiá-los” e outras tantas litanias deploráveis.  A ocorrência mais modesta no cânone dos ditadores é a obra de Salazar, pois seus livros chamam a atenção exatamente pelo grande esforço do autor para não gerar nenhuma empolgação. Já Fidel Castro, leitor prodigioso, era mais interessante quando escrevia do que quando discursava: em 1986, num Congresso do PC em Havana, bateu o recorde mundial de tédio, proferindo um discurso que, com 7 horas e 10 minutos de duração, foi um pouco mais curto que um dia de trabalho. Já o Livro Verde perpetrado por Kadafi – uma evidente versão líbia para o livro de Mao – é designado por Kalder como uma das obras mais idiotas do cânone dos tiranos e, até hoje, uma vergonha para a Líbia. Kalder reúne ainda, da forma mais bem humorada possível, detalhes pouco conhecidos das aventuras bibliográficas bizarras de Niyazov, Sadam, Franco e, ainda, dos pouco conhecidos “homúnculos de Stalin”, como Ceausescu ou do antigo Kim Il-sung, que definiu em livro a política Juche (“autosuficiência” em coreano), óbvio pastiche modernizado do stalinismo. Todos eles alinhavaram escritos para a literatura dos ditadores O objetivo central do cânone literário dos ditadores não era persuadir, muito menos informar, mas sim humilhar: martelando incessantemente o que era falso, tornando tais falsidades onipresentes e inevitáveis e insistindo que todos concordassem publicamente com elas, o regime exibia todo o seu poder, reduzindo os indivíduos a nulidades.  Kalder terminou seu livro pouco antes da eleição de Trump e já pressentia o quanto os novos ditadores populistas acabariam brotando como cogumelos no interior de regimes democráticos. A grande diferença é que os novos tiranos populistas sequer são grandes leitores e não mais escrevem e nem mesmo terceirizam a publicação de livros. Apenas digitam freneticamente, viralizando resíduos odiosos muito parecidos com os cânones literários dos ditadores. Como no passado, eles também atingem um público literalmente cativo. Com uma diferença: é um cativeiro aceito voluntariamente por grande parte do público. Não tão voluntariamente, claro, pois os algoritmos seduzem, atingindo o lado mais soturno dos nossos corações, ou seja, o mesmo alvo mirado pelos livros dos ditadores. Alexander Soljenitsyn, o escritor mais perseguido pelos homúnculos de Stalin, antecipou nossa atual exposição a tais fraquezas emocionais ao escrever: “Se ao menos fosse tudo tão simples! Se ao menos houvesse pessoas más em algum lugar insidiosamente cometendo más ações, e fosse necessário apenas separá-las do resto de nós e destruí-las. Mas a linha que divide o bem e o mal atravessa o coração de todo ser humano. E quem está disposto a destruir um pedaço do próprio coração?” É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ‘CROCODILOS, SATÍRICOS E HUMORISTAS INVOLUNTÁRIOS’ (ED. INTERMEIOS)

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