Livro analisa sanidade e obra do escritor irlandês James Joyce

'Joyce Era Louco?' parte da dúvida de Lacan sobre o estado mental do autor para analisar sua literatura

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Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:
O escritor irlandês James Joyce aos 57 anos Foto: Gisele Freund

Depois de ter mergulhado na obra do escritor irlandês James Joyce, o psicanalista francês Jacques Lacan propôs a seguinte pergunta numa aula de 10 de fevereiro de 1976: “Joyce era louco?”

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Quarenta anos depois, o estudioso e tradutor de James Joyce, Donaldo Schüler, refaz esse mesmo questionamento em seu livro recém-publicado: Joyce Era Louco? Não por acaso, Donaldo busca inspiração em Lacan para falar de Joyce. Foi a psicanálise e o interesse em conhecer a fundo a teoria de Lacan que o levaram a traduzir Finnegans Wake na íntegra. Essa tradução foi publicada em cinco volumes pela Ateliê Editorial entre 1999 e 2003.

Em Joyce Era Louco?, Donaldo não se vale apenas de reflexões psicanalíticas ou lacanianas. Para adentrar no universo joyciano, mais especificamente no de seus últimos romances, Ulisses e Finnegans Wake, o autor lança mão de um compêndio de referências mitológicas, literárias, artísticas, históricas etc. No seu livro há lugar, por exemplo, para Roland Barthes e Ferdinand de Saussure, além de Machado de Assis, Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Arthur Bispo do Rosário... 

Quanto à loucura, Donaldo lembra que, na mitologia grega, ela é representada pelas Bacantes ou Mênades. Essa última palavra tem a mesma raiz de mania, que, em frenesi, diz Lacan, explode com violência real. O autor exemplifica a questão com a história da mãe de Penteu, rei de Tebas, uma Mênade, que, sem reconhecer o filho, e em êxtase, mutila-o. Ela é imitada por outras Mênades e, desse modo, “Penteu voa aos pedaços pelos ares”. Em Ulisses e Finnegans Wake, principalmente, Joyce, numa “excitação maníaca”, não teria feito os padrões literários e a língua voarem aos pedaços pelos ares? 

Segundo Donaldo, Lacan “atribui a estonteante inventividade de Joyce à mania e lembra que o termo deve ser entendido em sentido psiquiátrico. Esquirol, o primeiro dos psiquiatras, elenca, no início do século 19, peculiaridades de maníacos: sensibilidade, ilusões, exaltação, rupturas, ideias soltas, fugazes”, características presentes na escrita de Joyce e na expressão artística de outros “desvairados de seu tempo”: Breton, Beckett, Fellini...

Mas, especula Donaldo com base em Lacan, o que teria levado Joyce a escrever? Joyce teria escrito para se libertar do corpo, que representaria o “passado familiar, educacional, literário. Livre do corpo imposto, James Joyce teria estado livre para criar o corpo de sua eleição, o corpo da arte.” Portanto, “Joyce sai do corpo castigado para arquitetar o corpo escrito, hostil a submissões. A transformação não se dá de vez, invenções originais crescem lentamente. O corpo (a formação familiar, a jesuítica, a eleita) é substância de persistente reelaboração”, ressalta Donaldo.

Porém, Joyce Era Louco? não trata só de psicanálise. No segundo capítulo, intitulado Ulisses, Donaldo propõe uma espécie de guia de leitura do romance. Aliás, é um luxo termos dois excelentes guias de leitura de Ulisses no Brasil: o primeiro de Caetano Galindo, publicado em 2016, e agora este. 

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A proposta de Donaldo difere, contudo, da proposta de Galindo. Para recontar Ulisses, Donaldo se vale de diferentes estilos, que lembram os estilos adotados por Joyce para compor seu romance. Finda seu resumo, por exemplo, com um grande monólogo. Além disso, Donaldo retorna à Grécia demonstrando minuciosamente como os episódios e personagens da Odisseia são capazes de explicar as passagens e as personalidades do romance joyciano.

Nesse sentido, Donaldo se opõe radicalmente à posição de Vladimir Nabokov, que, no século passado, também propôs um resumo de Ulisses. Nabokov era contra a “tendência de ver nas aborrecidas vagabundagens de Leopold Bloom e as suas pequenas aventuras de um dia de verão em Dublin uma paródia fiel da Odisseia. Não há nada que provoque mais tédio que uma longa alegoria baseada num mito gasto.” Entretanto, conclui, “é evidente que na questão das vagabundagens de Bloom há um eco homérico vago e genérico, como sugere o título do romance; mas seria uma completa perda de tempo procurar paralelismos em cada uma das passagens e em cada uma das situações da obra”.

Também Jean-François Lyotard, num ensaio chamado Retorno, afirma que, da Odisseia grega ao Ulisses irlandês, o livro se transformou e o título “não revela a identidade da Odisseia, a evoca, mas enredando-a, a equivoca”. 

Donaldo prova como eles podem estar equivocados e como são grandes os ecos deixados por Homero na prosa joyciana. O autor propõe ainda um resumo de Finnegans Wake, mas não parece fácil resumir o último romance joyciano; portanto, não pense o leitor que encontrará clareza nessas páginas. Afinal, lembra Donaldo Schüler, em Finnegans Wake, mais do que nunca, Joyce é um escritor rebelde que “abre buracos no simbólico, desarticula ideias e palavras, mina monumentos, constrói, faz e desfaz nós em exercício contínuo”. 

Erudição, estilo e lucidez compõem esse livro instigante e imprescindível. 

*Dirce Waltrick do Amarante é autora de 'Para Ler Finnegans Wake de James Joyce' e 'James Joyce e seus Tradutores', ambos publicados pela editora Iluminuras

Capa do livro 'Joyce Era Louco?', de Donaldo Schüler Foto: Ateliê Editorial

Joyce Era Louco? Autor: Donaldo SchülerEditora: Ateliê Editorial 240 páginas R$ 45

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