Livro de autor de 'Moby Dick' conta encontro com Pedro II no Brasil

'Jaqueta Branca', livro de Herman Melville ainda inédito no País, é inspirado em viagem que o escritor fez pela América Latina

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Por Rodrigo Petronio
Atualização:
Detalhes de ilustrações do livro 'Moby Dick', publicado após 'Jaqueta Branca' Foto: Reprodução/Harper's New Monthly Magazine

O escritor americano Herman Melville realizou quatro grandes viagens marítimas que resultaram em quatro livros. A mais longa ocorreu de agosto de 1843 a outubro de 1844, a bordo da fragata da Marinha americana USS United States, conhecida como Neversink. Essa viagem lhe forneceu o material para Jaqueta Branca ou O Mundo em um Navio de Guerra, publicado em 1850 e até agora inédito no Brasil. A Carambaia acaba de suprir essa lacuna em uma edição primorosa, com tradução de Rogério Bettoni e posfácio da especialista Priscilla Allen, autora de um estudo clássico pela Universidade de Cornell em 1966.

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O itinerário tem dez paradas. Percorre quase toda a América e algumas ilhas do Oceano Pacífico. Sai de Honolulu (Havaí), passa pela Baía de Matavai, no Taiti (Polinésia Francesa), chega a Valparaíso (Chile), a El Callao (Peru) e a Mazatlán (México), contorna a Terra do Fogo até o Rio de Janeiro e, por fim, atraca em Boston (EUA). A despeito disso, não pode ser visto como um diário de viagem, pois a tipificação dos personagens e os recursos narrativos transcendem o escopo documental.

Mestres d’armas, timoneiros, artilheiros, chefes de traquete, de popa, de mezena, de gávea, tanoeiros, rancheiros, pajens, taifeiros, cozinheiros, ajudantes de veleiro e de armeiros, tenentes, comissários, mestres de navegação, fuzileiros. Esse leque de especificações de funções se enriquece ainda mais com a variedade e a precisão dos termos técnicos que esta edição reúne em um glossário: sovela, talinga, ovém, gurupés, eslinga, enxárcia.

Um dos aspectos nucleares é o emprego de um narrador em primeira pessoa que fala de si mesmo em terceira. Esse recurso confere uma ambiguidade nuclear ao protagonista, ao mesmo tempo interior à narração (diegesis) e exterior às ações. Embora seja chamado de senhor Bridewell por um dos personagens, a identidade do narrador nunca se revela. É mencionado do começo ao fim como o Jaqueta Branca. São esses aspectos técnicos que fizeram de Melville um mestre para William Faulkner, Thomas Mann, John Dos Passos e a literatura do século 20.

Herman Melville, autor de 'Moby Dick', narra encontro com Pedro II no Brasil em 'Jaqueta Branca' Foto: Divulgação

A antiga forma do catálogo é empregada para cobrir todas as atividades a bordo, das leis aos jogos, da biblioteca à diversão, dos acidentes graves à crítica ao flagelo, equiparado à escravidão romana. Mesmo renunciando à alegoria, Melville concebe o navio como microcosmo. Vê-se a defesa de ideais democráticos, de igualdade e de cooperação, sinalizando algumas ideias de Stuart Mill e dos pensadores utilitaristas.

Uma das curiosidades diz respeito ao desembarque no Rio de Janeiro. Acompanhamos o encontro com Pedro II, cuja irmã mais nova acabara de se casar com um nobre europeu. As pompas da corte e a subserviência total ao monarca. A recepção do imperador e seu séquito a bordo do navio. A geografia física da Baía de Guanabara.

Por outro lado, a jaqueta é comparada a uma mortalha. Esse signo se metamorfoseia e recobre outros campos. Associa-se às vestes da mulher de Venel, criada por Walter Scott como variação de Ondina. Mescla-se ao mito de Nesso. Ferido por Hércules, antes de morrer Nesso entrega a Dejanira um frasco de veneno. Diz-lhe que se trata de um unguento milagroso que o levará a amá-la para sempre. Dejanira emprega o unguento-veneno na túnica do marido e este morre ao vesti-la.

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Essas faces nos sugerem um desfecho trágico. Contudo, os caminhos da jaqueta e do Jaqueta surpreendem pela bifurcação. Como sugere Allen, o termo Neversink é o nome do navio de Melville-Jaqueta e dos couraçados em geral. Também era o termo empregado para as primeiras terras avistadas quando se chegava a Nova York.

Por essas relações parte-todo, de sinédoques e metonímias, o navio United States e, por extensão, os EUA, passam a ser apenas parte de um projeto de democracia global. Afinal, quando a neve cai, todos se transformam em jaquetas brancas, diz o narrador. O mundo é uma equação entre o individual e o coletivo, entre liberdade e determinação. Um ano mais tarde, Melville publicaria sua obra-prima: Moby Dick. Subtítulo: A Baleia Branca. A jaqueta perdida do Jaqueta se esvazia das dimensões humanas. Retorna sob a face de um animal que é, ao mesmo tempo, deus, natureza e destino. 

*Rodrigo Petronio é escritor, filósofo, doutor em Literatura Comparada pela Uerj e professor na Faap

Capa do livro 'Jaqueta Branca', de Herman Melville, publicado pelaeditora Carambaia Foto: Divulgação

'Jaqueta Branca' Autor: Herman Melville Tradução: Rogério Bettoni Editora: Carambaia 464 páginas R$ 103,90