Livro de linguista francesa decifra dialeto particular de Trump

'A Língua de Trump' é uma análise detalhada das falas do político, mostrando como sua sintaxe truncada, seu vocabulário raso e sua repetição de palavras foram características fundamentais para sua retórica

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Por Elias Thomé Saliba
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Quando Donald Trump irrompeu no cenário político internacional, jornalistas incumbidos de traduzir seus discursos, ou melhor, suas “falas”, necessitaram de um período de adaptação pois o presidente, assumindo o papel de ser “antissistema”, rompeu com os todos os padrões da linguagem pública e, com sua eleição, os Estados Unidos e o restante do mundo sofreram uma forte mutação no universo moral da comunicação. Talvez os jornalistas que mais sofreram neste período foram os tradutores, que tiveram que arrancar muitos cabelos: tanto na escala da frase quanto na do discurso, os elementos que compõem a linguagem trumpiana apareciam incompletos e desprovidos de sentido. Para quem escutava ou traduzia, a impressão era de estar frente a um emissor que lançava palavras para todos os lados, sem nenhum fio condutor. Foi esta experiência difícil que levou Bérengère Viennot, linguista francesa e tradutora de textos jornalísticos, a realizar uma sondagem ampla, baseada na centena de discursos, entrevistas, mas sobretudo em cerca de 700 tuítes de Trump, para escrever A Língua de Trump, uma análise detalhada das falas presidenciais. 

O presidente norte-americano Donald Trump Foto: Lucas Jackson/Reuters

Bérengère teve a paciência de não desistir da empreitada à primeira irritação, apontando características facilmente reconhecíveis: sintaxe truncada, vocabulário muito raso e, acima de tudo, repetição infinita das mesmas palavras. “O Twitter é algo maravilhoso para mim, porque consigo transmitir a mensagem… talvez eu não estivesse aqui conversando com você como presidente se eu não tivesse uma maneira honesta de comunicar a minha mensagem”, confessou Trump em março de 2017. Daí que a análise estatística das tuitadas diárias de Trump é tarefa quase infindável. Ele explorou (e ainda explora) como ninguém o aplicativo, já que, segundo dados confiáveis, alcança cerca de 100 milhões de seguidores: é a mídia do momento, com sua brevidade forçada, fragmentada e descontextualizada, capaz de expressar instantaneamente sentimentos crus, sem nuance ou subtexto, e sua capacidade de borrar, até mesmo extinguir, a fronteira entre sentimento e fato. No entanto, Trump recentemente teve seu perfil suspenso em diversas redes sociais. Presciente, Charb (o cartunista morto em 2015, no ataque terrorista ao Charlie Hebdo) alertava que o uso excessivo de emojis e códigos não verbais era um choque sensório que acabaria transformando nossos cérebros em aquários de peixinhos. Os emojis, e códigos de pontuação de Trump fundamentam um léxico muito raso: “aspas” = cinismo; “???” = descrença; “tudo escrito em maiúsculas” = raiva – e por aí afora. Quanto às categorias de palavras, o espectro de uso é paupérrimo, limitando-se a expletivos delirantes, como “Wow!”, “sad!”, “great”. Já nas categorias dos chamados “vocábulos de arrependimentos”, tais como “lamento” ou “peço desculpas” – nada a estranhar: zero ocorrências.  “Olhem a cara dela. Quem é que votaria a favor disso? Dá para imaginar um negócio desses, sendo a cara do nosso próximo presidente?” tuitou Trump a respeito de Carly Fiorina, a mulher com a qual ele disputou na convenção republicana a indicação presidencial. Outras dezenas de tuites com frases sexistas e misóginas referentes às mulheres são impublicáveis. O vocabulário que Trump escolhe utilizar é de uma brutalidade fora do comum. E não se trata apenas da representação semântica de uma intenção belicosa, como quando ele ameaçou a Coreia do Norte com «fogo e fúria». Em sua linguagem cotidiana mais banal, empregada todos os dias, Bérengère demonstra que ele dá uma surra na língua inglesa. Para começar, repete vezes sem conta as mesmas palavras vazias para designar realidades que sabemos ser cheias de nuances; no início todos pensavam que assessores orientavam as tuitadas, mas foi confirmado que o próprio Trump nunca resistiu em transformar o seu smartphone num diário pessoal, e parece, ainda hoje, acessá-lo assim que acorda, despejando ali, quase diariamente, uma verdadeira logorreia, encontrando muitas coisas a dizer sobre uma série de assuntos; quando não encontra, sempre repete o bordão: "Make America Great Again”.

Explosão causada por uma munição policial é vista enquanto apoiadores de Donald Trump se reúnem em frente ao Capitólio dos EUA Foto: Leah Millis/ Reuters

Roland Barthes, em famoso ensaio de 1968, chegou a comparar o discurso que elimina o referente ao discurso esquizofrênico. Na época de Barthes, a internet sequer existia, mas, analisando a fala de Trump, certamente ele teria mais argumentos para insistir na comparação ou, ao menos, nos lançaria alguma piscadela do seu túmulo. O único elemento recorrente que o auditório de Trump sempre encontrará, seja qual for o assunto abordado pelo presidente americano, seja qual for o contexto e o pretexto da intervenção, será… ele mesmo. Em resumo: ele é o seu próprio referente. Em outras palavras, a única realidade é aquela que sai da sua boca e quem quer que diga o contrário está mentindo, especialmente a mídia, que ele corporifica particularmente no New York Times, no Washington Post e CNN.  Trump e os funcionários de seu governo vivem em um mundo no qual é suficiente nomear a realidade para que ela tome forma: “Parece que foram os democratas que decidiram separar as crianças de seus pais refugiados clandestinos”; “Parece que a pandemia já está no final”. É um tipo de pensamento mágico, que gira em loop retornando sempre à convicção de que se pode realizar algo desejando-o com toda força – e permite reformular a realidade – porque ele só confia em si mesmo para tomar suas decisões. Qualquer informação factual é tratada como ameaça. Bérengère observa ainda que tal recusa em aprender anula completamente os mecanismos da empatia, já que esses são acionados a partir da experiência de outras pessoas. A autora ainda se concentra em compreender o público que compõe a base da recepção de Trump, real ou mitologicamente descrita como “a América simples e humilde, das fábricas que fecharam, que trabalha e tem seus empregos surrupiados por chineses, latinos, índios ou mexicanos e nada tem a ver com os intelectuais da Costa Leste, que do alto dos seus diplomas querem dar lições de moral, degustando tofu orgânico sem glúten”. O matraquear incessante da “realidade alternativa” de Trump faz com que as notícias falsas viralizem nestes segmentos de público, numa espiral orwelliana. Mas o que promove tudo isso são pessoas de verdade que compartilham ou retuitam por impulsos ou sentimentos reais: carência afetiva (replicam falsidades atraentes para ficarem “populares” em seus círculos digitais); ódio (repassam aquilo que sabem que é fraude informativa, mas, acreditam que destruirá a reputação de alguém que repudiam) ressentimento, inveja, etc.  Trump bem humorado? Não falta humor na sua língua, sobretudo para alguém oriundo dos shows televisivos. As piadas de Trump são fáceis de entender e de traduzir: elas têm a sutileza de um elefante em loja de porcelanas e, quando há subentendidos, são tão claros que não é necessário pensar demais para compreendê-los. Nas conhecidas escalas do riso e do humor formuladas por estudiosos como Rod Martin ou James Agee, Trump é um mestre hiperbólico da ‘Schadenfreude’, pois seu objetivo é deliberadamente magoar os outros para ser engraçado. Nem é preciso acrescentar que tal humor é típico de pessoas que demonstram comportamento antissocial, impulsividade, egocentrismo e falta de remorso. Como já mostraram outros autores, como Peter Osborne e Tom Roberts, Bérengere mostra que Trump nunca ri. Em toda a sua pesquisa ela encontrou apenas uma ocorrência pública de risos presidenciais. E foi durante um comício de campanha: um cachorro começou a latir e um espectador exclamou "É Hillary!". Então, e foi só neste momento, único, num período de quatro anos, que Trump deu uma gargalhada espontânea – que é aquele riso libertador, desopilante, humano e sublime. Muito significativo. Talvez mais do que todo o resto. ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DA USP, AUTOR DE ‘RAÍZES DO RISO’ (CIA. DAS LETRAS) E COORDENADOR DO ‘HUMORHISTORIA.WORDPRESS.COM’

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