Livro de roteirista de 'Solaris' narra vinda de Anticristo à Terra

'Salmo', de Friedrich Gorenstein, chega ao Brasil em edição da Kalinka

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Por Aurora Bernardini
Atualização:
Friedrich Gorenstein, autor de 'Salmo' e roteirista de 'Solaris' 

Intrigante e apaixonante é Salmo (1975) de Friedrich Gorenstein (1932-2002), autor judeu russo praticamente desconhecido no Brasil, apesar de ter sido também roteirista, entre outros filmes, de Solaris, de Tarkovski. O livro é, como quer o autor, “um romance sobre os quatro flagelos do Senhor” e, por sua temática, construção e estilo, pode ser considerada a mais importante entre suas melhores obras (Expiação, A Casa com a Torre, O Lugar).

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O romance narra nada menos que a aparição do Anticristo, em 1933, numa pequena aldeia da Ucrânia e suas peripécias pela Rússia stalinista até 1973, ano em que desaparece. As etapas de suas andanças são pontuadas por projeções entre profecias da Bíblia e acontecimentos realistas da Rússia do século 20 (grande fome na Ucrânia, invasão alemã, repressão stalinista, o homo sovieticus, o lugar do judeu na sociedade soviética), época e lugar em que se desencadeiam os flagelos impostos por Deus aos homens, como punição de seus terríveis desmandos.

Cada um dos capítulos descreve um flagelo (a espada, a fome, a doença e, particularmente, a luxúria – o animal selvagem que, ao dilacerar, frutifica) e seus envolvidos que o Anticristo não perde de vista. A estrutura de cada capítulo é curiosa: um preâmbulo teológico-filosófico em que ora se defrontam o Antigo e o Novo Testamento, ora Moisés, que veio para amaldiçoar os pecadores e defender as vítimas, e Cristo (o irmão do Anticristo), que veio para perdoar aos pecadores e acenar a eles e às vítimas com a vida eterna , traído não apenas por Judas, mas pelos apóstolos que não o compreenderam e conspiraram contra ele e pelo “pântano cristão de questões metafísicas alheias ao Cristo”: ora a concepção de mundo de Dostoievski e a de Puchkin; ora o ateísmo e a fé, ora a cultura ocidental e as verdades bíblicas, ora a poesia e a história etc. Depois do preâmbulo há sempre uma parábola que descreve, numa linguagem muito viva, as paixões e os instintos dos homens e das mulheres (principalmente russos e judeus) que se entrelaçam e redundam em fatos expostos com perspicácia e crueza total e implicam as diferentes punições, acompanhados por digressões e interpretações do autor e – finalmente – os vaticínios de um magistral deus-ex-machina: o homúnculo que o jovem Saviéli consegue criar em seu laboratório graças a seus conhecimentos alquímicos e à ajuda da profetisa Pelágia, filha adotiva e última amante do Anticristo.

A ele Saviéli submete algumas questões que considera cruciais: Quais são as maiores ideias do mundo? O que é mundo religioso e mundo filosófico? Quais são os caminhos para se chegar a Deus? Como saber se uma ação é boa ou má? O que é verdade? Qual a diferença entre o bem e a bondade?

Se as respostas do homúnculo são teoricamente incontestáveis, as “mensagens” do narrador que se entreveem atrás delas convidam à discussão.

Uma das mais curiosas diz respeito ao “caráter popular russo”, que teria sido esgotado pela consciência popular, por meio da qual o povo começou a assumir a direção da história: “Quando o povo quer, com sua consciência humilde, compreender seus instintos profundos, forma-se aquela filosofia de lubok, de tchastuchka, à qual se curvam os eslavófilos da Rússia. Um criminoso desastrado – oposicionista ou governante – eis o produto final da consciência popular... “ ( Por sinal, essa ideia é condividida pelo socialista Bielinski, o maior crítico russo do século 19, que, numa carta a Annenkov, de 1848, escreve: “Os nossos eslavófilos ajudaram-me muito a abandonar a crença mística no povo. Onde e quando o próprio povo se libertou? Sempre tudo se fez pela personalidade”.) 

E – continua Gorenstein –“ Se , no século 19, a Rússia conseguiu criar uma grande cultura, foi porque as reformas de Pedro, o Grande, arrancaram os intelectuais do povo, porque, explorando o frutífero oceano do instinto popular, a cultura não foi escravizada pela consciência popular. Somente mais tarde, mais perto do fim do século, graças aos esforços dos intelectuais-acusadores, a consciência popular começou a escravizar a cultura, e os seguidores dos acusadores levaram esse processo até seu limite.”

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No que se refere à religião, um dos pontos de que o narrador parte é que o homem é “tolo, mau e miserável” desde o momento em que, assumindo a consciência, é expulso do paraíso. No entanto ele nasceu com o “ instinto” de Deus, que não é explicável nem pela razão, nem pela inteligência: ouvir Deus falando a um arbusto só é possível ao artista. A necessidade de Deus é a primeira prova da existência de Deus. Entre os que foram salvos do dilúvio enviado por Deus (cuja obra ele mesmo reconheceu ser imperfeita), os ímpios serão por Ele abandonados – “Nem todos os estilhaços da taça podem ser colados”–, mas Cristo foi enviado para não abandonar os que Deus abandonou.

No que se refere particularmente aos judeus, este diálogo entre Pelágia e o Anticristo é revelador: 

–Pai, mas como podem se salvar os perseguidos, como podem se salvar aqueles que são odiados?

–Para os perseguidores, Cristo é o Salvador, para os perseguidos, o Anticristo é o Salvador. Para isso é que fui enviado pelo Senhor.

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Vocês ouviram o que foi dito: amem os seus inimigos, abençoem quem os amaldiçoa, façam o bem a quem os odeia e orem pelo bem dos que os magoam e os perseguem. Mas eu lhes digo, amem não seus inimigos, mas o ódio dos seus inimigos (...) Pois o ódio de seus inimigos é a Marca Divina que os abençoa (...). Esse povo não se destaca em nada dos outros, e em nada é melhor, mas com esse ódio invariável ele se destaca, e por causa desse ódio ele é melhor.

Religião à parte, mas focalizando aqui a relação judeu/russo numa das parábolas do livro, o caso do crítico de arte Aleksei Iossifovitch Ivolguin é emblemático. O avô dele conseguira tocar o sobrenome Katz por Ivolguin, comprando-o de um militar e Aleksei não só se sente agora russo ( “de passaporte”), mas – num ímpeto do patriotismo que ele teria, se fosse verdadeiramente russo -- chega a desprezar os judeus “ que não apreciam o pão russo, a hospitalidade russa... Os ingratos... Ah, como ele os detesta!...”

Pois bem, em 1952, ano do recrudescimento do terror stalinista em geral e dos ataques antissemitas em particular, sua vida feliz termina e, depois de vicissitudes cada vez mais acabrunhantes, em 1953 ele acaba preso e morto justamente pela origem judia que ele havia tentado repudiar.

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A hostilidade dos outros lhe havia feito perder a consciência de seu caráter judeu, mas ele o carrega como um fardo a ser rejeitado, inclusive por não ter, em 1953, uma terra própria à qual se ligar -- nota a estudiosa Korine Amacher, em seu ensaio sobre Gorenstein, L’oeuvre de Friedrich Gorenstein - Refus de Soi, Refus de l’Autre dans la Societé Soviétique . É essa rejeição que Gorenstein castiga, no romance que – no entanto, como a maioria dos escritos do autor --, encerra, no fim, uma nota positiva: “Qualquer vida e qualquer destino, mesmo uma vida amarga e um destino cruel, quando passa, deve se constituir num salmo. Louvar ao Senhor por ela ter acontecido, diferentemente das vidas que não nasceram e dos destinos que não aconteceram. Qualquer vida, mesmo amarga, é uma sorte e um privilégio...”

*Aurora Bernardini é professora de pós-graduação de literatura russa na USP 

Capa do livro 'Salmo', de Friedrich Gorenstein 

Salmo Autor: Friedrich GorensteinTradução: Moissei Mountian e Irineu Franco PerpétuoEditora: Kalinka 412 páginas

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